A “gafe” do Sílvio Santos e os advogados do diabo
Acredito que foi o comediante Russell Brand que falou que não devemos ser advogados do diabo, porque “o diabo já tem bastante advogados“. Sempre comprendi a frase como uma forma de dizer “o indefensável já está bem defendido até demais, não se una ao coro”. E ao ver a reação de alguns núcleos da internet, sou obrigado a concordar: o time legal do capeta já está bem escalado, você não precisa o defender.
Como você deve saber, no último domingo rolou o Teleton no SBT. O Sílvio Santos, já se sabe há algum tempo, está no modo “me processe à vontade, porque minha idade avançada já garantiu que a justiça não chegará em mim”. É igual quando eu carrego uma centrífuga no laboratório e o período de rotação é de 10 minutos, mas eu termino meu expediente em 5. Eu SEI que não vou precisar aliquotar aquele sangue, assim como o Sílvio sabe que pode fazer basicamente o que quiser a essa altura porque as consequencias não irão importar.
Então. Num desses momentos de “falarei o que quiser, foda-se”, o Sílvio fez o comentário infelicíssimo que você encontra nos 30 segundos do vídeo abaixo:
Caso você não possa assistir o vídeo no momento, é o seguinte: numa série de zoações, o Sílvio chega numa garota negra que fala de sua aspiração em ser cantora ou atriz, e retorque com “com esse cabelo aí?” em tom de inegável desprezo.
Quando vi a descrição do vídeo, fiquei chocado. Ok, eu tou ligado que o Sílvio tá falando tudo que vem na telha há um tempo. Mas fazer pouco caso de uma criança ao vivo em TV nacional por causa do seu cabelo crespo me parece… bizarro demais até pra ele. Aí eu vi que não é tão bizarro assim, a julgar pelo volume do time legal do capeta defendendo o comentário do apresentador.
É curioso também que tantos sites de notícias descrevam a parada como uma inofensiva “gafe”, como esquecer o nome da namorada do amigo ou peidar na fila do refeitório da faculdade.
Um dos argumentos mais usados pra defender o comentário dele é “mas ele zoou o cabelo da menina branca e ninguém se comoveu!“.
Supondo que alguém está fazendo esse argumento com franqueza (embora soe tão voluntariamente míope que sinceramente pareça mais com má fé), eis as minhas duas principais refutações:
1) Negros sofrem um preconceito racial do qual brancos simplesmente não são alvos. Por causa disso, uma ofensa racial contra um branco e um negro não têm o mesmo peso, por mais que você deseje o contrário. Eu sei que reacionários gostam de fazer de conta que racismo não existe mais, logo se referir a uma garota como “ô sua branquela!” e a outra de “ô sua crioula” seria então a mesmíssima coisa, completamente indistinguível, mas não é.
2) O comentário do Sílvio sobre a garota branca é apenas que seu cabelo está engraçado — como resposta faux-indignada a uma aparente provocação da garota, que o chamou da mesma coisa. Foi um “toma lá, dá cá”; chumbo trocado. O “eu sou engraçado? Engraçada é você, ora mais!” entre os dois foi infinitamente mais inócuo, especialmente por estar despido de qualquer subtexto racial.
Já a farpa do Sílvio sobre a garota negra, por outro lado — e que veio sem qualquer provocação; este detalhe é importante porque levanta a questão da motivação por trás da ofensa gratuita — é que ela não pode ser uma cantora nem atriz por causa do seu cabelo. A única coisa digna de nota do cabelo da garota (que eu achei bem bonito, na moral: me lembra uma garota dos tempos de igreja por quem eu tinha uma quedinha) é que ele é crespo, então a entrelinha inevitável do comentário do Sílvio é “você tem cabelo crespo, logo, não pode trabalhar na mídia”.
A defesa literalista joão-sem-braço é dizer que o o comentário foi totalmente idôneo sobre um estilo de penteado, e não sobre a etnia da menina. O insinuado é que a pessoa só é racista se falar explicitamente “negros são moralmente inferiores”, e aí passar num cartório pra assinar o documento e reconhecer a firma. Qualquer coisa abaixo disso é só um “comentário sobre penteado”, inocente, sem contexto, num vácuo.
É estranho que alguém que se apegue a uma regrinhaa arbitrária pé-da-letra como essa ignore a distinção clara e inegável entre CABELO (uma característica física que é parte da sua identidade pessoal/racial) e PENTEADO (um estado temporário do cabelo que você pode mudar com relativa facilidade).
Você pode negar o quanto quiser — embora fique feio numa rede social onde você é observado por tantos –, mas falar pra uma garotinha negra (com tom de desdém, isso que é foda) que ela não pode atuar ou cantar por causa “desse cabelo aí” é uma afirmação bastante racista.
Muitos vociferam que é exagero chamar o Sílvio de racista (o que eu concordo parcialmente), e usam “argumentos” como este que eu vi no Twitter ontem:
Perceba o nonsequitur acima — o Sílvio Santos não é racista, absolutamente, a despeito do que falou, porque… a garota é empregada dele. Afinal, seria absurdo achar que numa dinâmica de poder de empregado-empregador poderia haver preconceito racial, seu burro!
Extrapolando a lógica do colega cima: não importa o que eu fale sobre minha hipotética empregada negra: se eu pago seu salário, obviamente não sou racista, porque racistas não dariam dinheiro pra negros! Lembra o exemplo que dei acima, em que o sujeito só seria considerado racista por essa galera se declarasse de forma inequívoca num documento assinado e com firma reconhecida que acredita na inferioridade moral da etnia afro?
Aí que tá: se o tabelião do cartório fosse negro, o pagamento do reconhecimento da firma seria uma forma de dar dinheiro a ele. Veredito de acordo com a lógica acima: não é racista então!
Como falei antes: eu pessoalmente não acredito que o Sílvio Santos é um indivíduo racista; eu prefiro acreditar que este ícone brasileiro teve um momento isolado e impensado de falar merda sem avaliar com cuidado a implicação do que estava falando.
(Alguns argumentariam que isso É ser racista; além de achar essa análise meio de má vontade, entra na semântica do termo e não temo saco pra discussão semântica.)
Então, em vez de chamar o empresário de racista (uma acusação mais grave e mais difícil de verificar conclusivamente), falarei apenas que o comentário que ele fez foi racista — já que isso, ao meu ponto de vista, é inegável.
Mas estou curioso sobre a opinião de vocês. Quem me segue sabe muito bem que não sou o tipinho facilmente ofendível que prega pelo estabelecimento do politicamente correto antiséptico; humor às vezes precisa tomar tons mais subversivos (até mesmo pelo bem da liberdade de expressão). Mas pra tudo há um limite: falar pra uma garotinha negra (ao vivo pra milhões de pessoas, em tom de deboche) que por causa do seu cabelo ela não poderá ser uma artista pra mim passa dele.
MAS, quero saber a opinião dos leitores do HBD. Então fiz a enquete abaixo:
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