O tempora o mores!

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O título é uma citação de Marco Túlio Cícero, que traduzido significa “Oh, tempos! Oh, costumes!”, e está presente em suas Catilinárias (série de discursos acusatórios dirigidos ao Senado de Roma contra Lúcio Sérgio Catilina, então considerado traidor da República). Hoje me peguei utilizando essa mesma expressão ao pensar sobre o nosso próprio tempo — Que tempos! Que costumes! —, admirado que me encontrava pelas comparações feitas entre dois momentos de minha vida. Desenvolvo a seguir.

Tenho 29 anos. Pertenço, portanto, a uma geração que quero chamar de “Geração de Transição” — os nascidos entre meados dos anos 70 e 80, essa “charrete que perdeu o condutor”, para usar as palavras de Raul Seixas —, que consiste, basicamente, daqueles que viveram sua infância ou adolescência entre os anos 80 ou primeira metade dos anos 90. Uma geração, por assim dizer, analógica.

Crescemos praticamente sem acesso ao telefone como conhecemos hoje (para os moradores de meu bairro, o único telefone público disponível era um vermelho que funcionava através de fichas, então localizado na principal farmácia local), ouvindo nossas bandas favoritas em discos de vinil ou através dos programas de rádio, que vigiávamos com uma fita cassete virgem engatilhada no toca-fitas (geralmente um 3 em 1), pronta para começar a gravar assim que aquela música que queríamos tanto começasse a tocar — engraçado lembrar a fúria que nos acometia quando o locutor falava no meio da execução da música, estragando a tão esperada captura! —; e cuja coisa mais parecida com um computador que havia ao nosso alcance eram as máquinas de escrever IBM que infestavam os cursos de datilografia e as repartições públicas.

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Nossas pesquisas para os trabalhos da escola eram feitas na biblioteca pública; nossos trabalhos, escritos à mão (em caneta azul ou preta!, dizia a professora), nossas provas em papel mimeografado (ainda consigo sentir o cheiro), e nossas brincadeiras e encontros se davam na rua — era comum ter crianças na rua naquela época, correndo e se escondendo, gritando e brigando, machucando-se ou divertindo-se nas horas livres da escola —; para assistir algum filme inédito, tínhamos as locadoras de vídeo (VHS), onde muitas vezes precisávamos reservar com antecedência, tamanha era a demanda, e, ao devolvê-las, as fitas precisavam estar rebobinadas — será que algum jovem com menos de 15 anos conhece o termo? —, sob pena de pagar multa.

Videogames? Pouquíssimos eram os felizardos que os tinham em casa (“Estraga a TV!”, diziam os pais, aterrorizados com essa perspectiva). O mais comum eram os chamados ‘playtime’ ou ‘casa de jogos’, onde nos encontrávamos para jogar nos arcades ou nos consoles então caríssimos.

Isso tudo numa época em que os dias pareciam mais longos, e a temperatura mais amena.

Então veio a segunda metade dos anos 90, o Radiohead lançou o ‘Ok Computer’ (1997), como quem diz: “Ok, computador, você venceu”, e quase como que de repente — foi a impressão que eu tive —, abrimos os olhos e nos vimos mergulhados, alguns até mesmo afogados, num mar de informação, superexposição e acesso a tudo. De repente não mais que de repente, todo mundo andava encangado com um celular, absorto por seja lá que sombra se expunha através de suas luzes, e existir agora se dava em outro plano: a rede. As músicas, os filmes, a informação, vinham com tanta facilidade e fluidez que de repente ficou difícil distinguir o excepcional, ou ser marcado por ele. “Menos é mais” — um dos mantras de minha adolescência — foi substituído por “menos é menos, mais é mais”, e a admirável inocência dos jovens — e não falo em sentido ‘pueril’ — foi substituída por um cinismo cada vez mais doentio. A geração que desenvolvia seus músculos, ossos, e muitas vezes caráter, nas brincadeiras de rua, hoje sofre de obesidade, ansiedade crônica, problemas articulatórios precoces, temperamentalismo.

Quanto a quem não conseguiu se adaptar a essa transição, vive em crise, sem saber muito bem como viver “fora da caverna”, onde nada parece estar acontecendo. Não se trata, necessariamente, de um problema provocado pela solidão — fora da caverna, por incrível que pareça, é menos solitário do que dentro dela, apesar de parecer o contrário —, mas por uma, digamos, falta de ritmo (ou timing) para acompanhar os tempos, os costumes, da forma mais apropriada. Talvez as mudanças tenham acontecido de forma rápida demais. Os que eram bons de dança (de timing) se adaptaram com facilidade, entraram no baile, estão adorando a festa. Os que não eram, por outro lado, ficaram distribuídos entre os que se encostaram acanhados pelas paredes do baile, a observar os outros, e os que resolveram deixar a festa e voltar pra casa, onde podiam colocar em seu toca-discos uma música mais apropriada para o seu temperamento.

Eu, é claro, como bom colecionador de antagonismos, paradoxos e contradições (um homem analógico vivendo em um mundo digital), me esforço para manter “um pé nos anos 50, outro nos anos 2000”, como venho dizendo desde que comecei a usar a internet.

Confesso que não e fácil.

Créditos da imagem: Olalla Ruiz .

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Published on November 10, 2014 06:14
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