O Príncipe



Josh estava grato por poder refugiar-se naquela estalagem ruidosa e de atmosfera bafienta a suor e álcool, mas quente, ao contrário do vento gelado e da neve acumulada que lhe dificultava os passos. Há muito que andava, puxando o cavalo pelas rédeas atrás de si quando este começou a tropeçar, fraco. A estima pelo garanhão era demasiada para o deixar para trás. Agradeceu o homem do estábulo e pagou-o o suficiente para assegurar que Renegado era bem tratado. Assim que entrou no espaço atulhado, sacudiu a neve das roupas e evitou os olhares descontentes por ter trazido consigo um pouco do frio exterior. Pendurou o casaco e gorro húmidos perto da lareira e dirigiu-se ao balcão.                Haviam dois homens, ambos de cintura ampla e faces rosadas, separados por vários anos. Josh supôs que fossem pai e filho, donos daquele pequeno negócio, no meio de uma estrada solitária cuja presença de um estabelecimento, estivesse frio ou agradável lá fora, era de paragem quase que obrigatória. Pai e filho deviam viver bem. O mais novo atendeu-o, com um olhar que percorreu as faces do cliente o mais rápido que conseguiu, avaliando o seu aspecto repulsivo. Josh estava habituado a tais olhares, contudo desejou ter sido atendido pelo homem mais velho, pois decerto os anos a mais de experiência o haviam habituado às mais diversas pessoas. Se fosse outro, Josh poderia ter armado confusão só devido àquele olhar de desagrado.                Sabia que não entrava nos padrões de beleza. A sua estatura baixa e magra indicava, erroneamente, um homem fraco; o nariz adunco era o primeiro traço onde qualquer olhar se detinha, num momento de confusa surpresa; os dentes, demasiado grandes para se manterem dentro da boca, alargavam o maxilar e espreitavam o exterior. Dois deles, bem no centro, tinham sido perdidos numa sangrenta luta com o seu pai, deixando apenas um solitário e feio dente à mostra. A barba áspera estava já pintalgada com alguns pelos brancos, a pele avermelhada dava-lhe um ar de estrangeiro em qualquer ponto do reino, e os olhos, o único gene bom que lhe chegara, eram de um azul puro. Estes pareciam desafiar as trevas da sua aparência, um indício da sua bondosa alma.                 Entre o preconceito geral, as pessoas dirigiam-se-lhe como se dirigiam a um comum camponês analfabeto. Todavia, tal origem estava muito longe da verdade, pois Josh era, na realidade, um príncipe. Aliás, não um príncipe qualquer, daqueles que ganham o título através de regalias monetárias, mas o primogénito do Rei das Terras Baixas. Devido à sua posição de mais velho, Josh deveria ser herdeiro do trono, segundo a tradição. No entanto, a repugnância que provocava na sua própria mãe, desde bebé, facto que dava certa liberdade à população de o intitularem como Josh, o Amaldiçoado, ou ainda, o Horrível, fez com que se contornasse a lei, em caso excepcional. E, assim, o irmão mais novo, esse com os atributos dignos de um rei, passou a herdeiro.                 A mágoa e humilhação, por mais habituado que estivesse àquela existência de renegação, instalara-se no seu peito, em desenvolvimento crónico. Todavia, o que é a beleza? Questionava-se muito sobre a subjectividade deste conceito, acabando sempre por se sentir melancólico, pois, por mais que tentasse diminuir o impacto da beleza, não era capaz de o fazer. Ele próprio deixava os olhos prolongarem-se nas raparigas bonitas que cruzavam o seu caminho, cuja imaginação aproveitava para saborear uma vida que nunca teria. Para além da percepção do príncipe feio, contudo, pelo menos para uma jovem, sentada num grupo que ocupava duas mesas no canto da estalagem, Josh era belo. Através de que olhos ela o via era impossível saber, já que, se perguntássemos a qualquer outra pessoa que se encontrasse no estabelecimento, Josh seria descrito como um homem hediondo. Mas assim acontece no amor.                 Existe algo mais profundo do que a beleza. Algo que se sente apenas, e ultrapassa o plano físico. Muitos o sentem, mas poucos o compreendem. E, daqueles que o compreendem, são mais os que rejeitam tal sentimento, assustados por este não ser compatível com a imagem da beleza a que estão habituados. Esta rapariga, Ana, simples e cujo semblante suave se transformava num agradável e familiar rosto sempre que oferecia um sorriso, era das raras que estava disposta a deixar-se levar por esta força invisível. Foi por isso que sussurrou à amiga do lado, ocupada a namoriscar um rapaz de ombros largos e vocabulário estreito, a presença daquele príncipe disfarçado. A outra, num esgar desconfiado, disse-lhe que não sabia o que via ela naquele homem baixo e feio, mas, se desejava conhecê-lo, mais valia agir.                - Faz o seguinte, vais até ao balcão e pedes três jarros de vinho. Quando quiseres trazer os jarros ao mesmo tempo para a mesa, vais ficar atrapalhada por só teres duas delicadas mãos, obviamente. Se ele for um cavalheiro, vai oferecer ajuda; caso contrário, querida, é porque nem vale a pena ralares-te com o estupor.                - E depois? – Perguntou intimidada Ana.                - Depois, convido-o a juntar-se a nós e tens o pretexto perfeito para meter conversa! Agora vai, minha doida.                Ana seguiu o conselho da amiga e, colocando-se perto do homem, o qual tinha uma bebida fumegante entre as mãos, fez o seu pedido. Espreitou-o de faces rosadas e sorriu. Ele baixou os olhos, carrancudo, o que deixou a rapariga desanimada e insegura em relação ao sucesso do plano. No entanto, assim que se viu atrapalhada em agarrar os três jarros de vinho escuro, Josh lançou-se para a ajudar, tal como qualquer príncipe educado faria. O gesto levou a jovem corar e atrapalhar a voz ao agradecer a ajuda.                Pouco de pois, hesitante, o homem de rosto rude aceitou o convite para se juntar ao grupo, que bebia e cantava alegre. Eram mais barulhentos de que Josh estava habituado, visto ser raro ser bem-vindo em qualquer grupo e, quando tal acontecia, era para ser alvo de perguntas indecorosas, ou mesmo ordinárias. Assim, viu-se um pouco desconcertado perante a simplicidade alegre da rapariga que o tratava como qualquer outro. Sentiu-se, por momentos, normal e com o pensamento longe da sua aparência grotesca. Tal situação, no entanto, deixava-o em certo desconforto, o qual era disfarçado pelos sorrisos discretos, impossíveis de evitar, que dirigia a Ana.                Com o corpo quente e a alma leve, desculpou-se, horas mais tarde, para se ir deitar. Pretendia acordar cedo, pois tinha ainda uma longa jornada pela frente. A desilusão que notou no olhar da bonita jovem, que o abençoara com a sua companhia, provocou um aperto no seu peito. Aquele aperto era, sem dúvida, a comunicação do solitário coração, avisando-o que Ana era a mulher que desejava. Não só o seu coração, mas todo o seu corpo físico, percebeu então, queria-a. Pelo contrário, a sua mente, habituada a desconfiar e condicionada a acreditar que ele era um príncipe abandonado, um corpo vil, um rosto para nunca ser beijado, já que nem a sua mãe, Rainha das Terras Baixas, alguma vez fora capaz, convenceu-o a retirar-se. Josh assim o fez, de sorriso apagado. Contudo, talvez voltasse, um dia não muito longínquo, e encontrasse a bondosa Ana. E disse-lho.                 Na manhã seguinte, não tão cedo quanto Josh gostaria, devido ao excesso de vinho da noite passada, o príncipe viu o grupo jovial a prepararem a caravana, cheios de energia. Até parecia que não tinham estado com ele, mergulhados em álcool, canções e danças sedutoras. Ao preparar Renegado para a viagem, visivelmente recuperado, viu Ana acenar ao longe. Ele aproximou-se e achou-a ainda mais bonita do que a noite anterior. Claro que, avisava-o a mente, essa súbita formosura era influência de tal sentimento que lhe aconchegava o coração, pois ela era uma jovem vulgar e aprazível, longe das damas delicadas da corte a que se acostumara desde criança. A mulher provocou o príncipe anónimo a acompanhá-los, justificando-se com o partilharem uma viagem mais segura e agradável. Animado com tal proposta, Josh estava prestes a ceder quando o acontecimento seguinte corroborou a força dos seus pensamentos usuais.                - Bolas! – Exclamou um dos companheiros de viagem, alto e esguio. – Pensava que era da bebedeira, mas afinal és mesmo feio!                Ana lançou-lhe um olhar furioso, ignorado pelo outro, que continuou:                - Diz-me lá, como é que arranjas trabalho com essa cara? Não deve ser fácil. Mas, se quiseres juntar-te a nós, estás à vontade, ainda afastas os ogres do caminho!                E, rebentando em gargalhadas sonoras, afastou-se e deixou dois enamorados numa vergonha desconfortável. Josh quebrou o silêncio, de cabeça inclinada em despedida graciosa e real:                - Obrigada pelo convite, Ana. Mas estou habituado a cavalgar sozinho e mais depressa do que as caravanas me permitiriam.                 Sem a olhar, humilhado, não tanto pelo gozo do homem, pois vivia momentos desses com regularidade, mas mais por ter ousado pensar ser merecedor da companhia de uma jovem como Ana, montou o cavalo e pôs-se a galope. Não olhou para trás uma única vez, envolto numa submissão indigna a um membro da realeza. Caso o fizesse, caso tivesse renunciado ao orgulho ferido e lançado um último olhar, deparar-se-ia com uma Ana de olhos lacrimejantes e leria neles a súplica silenciosa para que voltasse. Apesar de ser possuidor de uma força capaz de derrotar todos os homens da caravana ao mesmo tempo, tinha um espírito fraco. Não que esta fraqueza fosse negativa, como outras fraquezas o são, pois apesar de ser a provocadora da sua partida absoluta, também poderia tê-lo levado a voltar para o lado de Ana, caso cedesse à vontade de a olhar uma última vez.
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Published on March 08, 2014 05:53
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