Memória
Passei os meus únicos dois dedos da mão direita pela sua imagem capturada na fotografia esquecida. Sem aviso prévio, resolveu aparecer no meio das minhas coisas, andava eu a vasculhar entre os meus antigos cadernos e folhas soltas. Tanto a papelada como a foto há muito se encontravam perdidos da memória, guardando uma outra realidade, um passado. Na fotografia antiga aparecia acompanhado por uma jovem, uma namorada de poucos meses. Dois meses, talvez? No máximo três, e isto já a contar com o período em que a cortejava enamorado. Lembro-me pouco do que vivemos juntos, no entanto, recordo-me do preciso momento em que a foto foi tirada. É provável que a memória esteja estimulada pela fotografia, daí lembrar-me deste acontecimento. As fotografias servem, aliás, para isso mesmo: guardar momentos, instantes, a fim de os relembrar mais tarde.Enfim, voltando à rapariga. Era linda. Linda e de uma sensibilidade extrema, pois percebia as pessoas melhores que elas próprias, como se houvesse uma transparência apenas captada por ela. Olhando para trás, é possível que me tenha percebido melhor do que eu julgava. É difícil dizer; ambos bastante egocêntricos e, pior, com a tendência para sermos vítimas do mundo. Era óbvio que duas pessoas que desejavam ser os maiores sofredores, incompreendidos e perdidos, não poderiam funcionar bem juntas. Encontrávamo-nos no meu pequeno quarto de estudante, o qual tinha apenas um aspecto positivo: a paisagem. Sobre uma vegetação verde e descuidada, e com um horizonte vasto que aludia à serenidade e aos sonhos. Eu soube, assim que a conheci, que ela adoraria sentar-se à janela a comtemplar o esplendor exterior. E assim foi, de facto. Deixava-se ficar ali, imersa numa melancolia muito própria e privada. Por mais que desse volta à cabeça, como se costuma dizer, não era capaz de imaginar o que realmente pensava, perita em adoptar feições neutras, as quais me levavam a conjurar se não estaria simplesmente vazia. Certo dia, agora me recordo, acusei-a disso mesmo, pondo um ponto final na relação. Ela parecia estar à espera de tal desfecho. Calçou os sapatos, os quais deixava num canto assim que entrava, pegou na mala e saiu, atirando-me com um “tchau” seco. Não sei o que pensei de tal atitude, mas agora vejo que ela tinha uma vantagem óbvia sobre mim. Enquanto eu falava abertamente dos meus complexos, renegando-a à incompreensão, ela mantinha aquele ar oco e distante. Refilou um pouco por eu querer tirar a fotografia, mas cedeu e ainda fez aquele sorriso que a câmara captou tão bem. Por mim, teria tirado muitas mais. Custava-lhe ver-se a si mesma e mostrava desejo em ser bonita. Contudo, ela era bonita. Está certo, não se trata do tipo de beleza a que estamos habituados, uma beleza fácil. As suas feições miúdas transmitiam-me a sensação de estar perante uma jovem mulher cuja beleza pertencia a outros tempos. Isto é, perdera-se nos cálculos – aliás, ela não tinha jeito algum para a matemática – e nascera anos depois do seu período histórico. Isto, claro, era apenas a minha percepção pessoal em relação ao seu aspecto físico. Eu estava tão convicto desta teoria, assim como da sua beleza, que ficava incomodado quando resolvia enumerar os pontos que mudaria para se tornar bonita. Na verdade, ela nem era de se queixar muito, visto saber que incomodava os outros quando se punha nisso. Acredito que, se me atrevesse a perguntar-lhe o que é que ela achava que estava mal em si, receberia uma longa lista de defeitos. Mas ela era de facto bela! Quanto mais a fitava naquela foto velha, mais certeza tinha. Através desta imagem recordo-me também de todas as suas imperfeições. Sim, tinha uma série delas, como bem se vê aqui na fotografia. Todavia, era esse conjunto de pormenores imperfeitos, que ela tanto desprezava, situados em locais estratégicos, que tornava o seu rosto invulgarmente belo. Assim como uma daquelas obras de arte que apenas tocam certas pessoas, talvez por terem uma perspicácia especial em si. Enruguei a testa ao tentar imaginá-la numa relação com um homem dotado desta capacidade artística. Orgulhar-se-ia de estar na sua companhia, tal como um detentor e verdadeiro apreciador de arte, e sentiria uma leve – ou forte – superioridade em relação aos incapazes de captar tal singularidade. Bem, não estou aqui a falar de uma peça decorativa, mas sim de uma mulher. Se fosse ainda senhora de uma personalidade melancólica e solitária, não seria fácil conviver com ela. Contudo, tal como eu mudei - orgulho-me de ter alcançado um outro nível de maturidade, a qual me permite apreciar diversas perspectivas sobre a vida e os outros -, ela também poderá ter crescido e transformado numa outra pessoa. Imaginei-a madura e distinta, com o seu quê de inocência a condizer com as suas feições. Agradava-me. Arrumei de novo a foto, colocando-a mais uma vez no esquecimento, e esperei voltar a vê-la, num dia futuro, quando aqueles dois jovens semi-apaixonados tenham sido substituídos quase por completo.
Published on March 24, 2014 10:44
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