A Chegada dos Bárbaros

O que esperamos na ágora reunidos? É que os bárbaros chegam hoje. Por que tanta apatia no senado? Os senadores não legislam mais?

(Do poema À Espera dos Bárbaros, de Konstantinos Kaváfis)

Resolvi fazer uma pequena pausa em minhas atividades mais urgentes para falar um pouco, só um pouco, sobre um acontecimento que vem me deprimindo já faz alguns dias: o espancamento público e sumário de Fabiane Maria de Jesus, dona de casa, moradora do Guarujá — palavra que segundo alguns significa “viveiro de rãs e sapos” — que, assim como Cristo à época de seu próprio suplício, contava apenas 33 anos quando caiu nas mãos da turba de bárbaros irresponsáveis que a espancaram até a quase-morte (ela veio a falecer após dois dias no Hospital Santo Amaro). O motivo? Um boato difundido por uma página do Facebook, um boato pura e simplesmente, sem qualquer indício de prova, como tantos outros que circulam na rede social de Zuckerberg, que a acusava de ser, pasmem, uma bruxa que sequestrava criancinhas para utilizá-las em rituais de magia negra.

Alguns contestarão o uso do termo “bruxa”, aqui colocado por mim com certa licença. Explico: em essência, a acusação (sequestrar crianças para usar em rituais de magia negra) quer dizer isso: uma bruxa, personagem que apavora o imaginário popular desde, talvez, a Idade Média.

A página que criou (ou difundiu, isso não ficou claro) o boato, veiculou a acusação ao lado de um retrato falado aleatório, feito pela polícia civil anos antes, referente a outro caso, que, pelo menos na opinião deste míope que vos escreve, em quase nada lembrava a Fabiane. A pouca semelhança não foi suficiente para impedir que alguém, ao vê-la chegar em Morrinhos, bairro onde morava com seu marido e seus dois filhos (12 e 1 anos de idade, duas crianças), gritasse: “Vejam, é ela!”

Não é difícil imaginar o que se seguiu. Para aqueles sem imaginação, dezenas de vídeos circulam pela rede, não é difícil encontrá-los. A cascata do terror, um efeito dominó de violência, pessoas que se uniram em turba para amarrar seus braços e pernas enquanto a espancavam com socos, pontapés, paus e pedras, e arrastavam seu corpo desfalecido como a um boneco do Judas, em meio a gritos e acusações (“Vagabunda!”), sem que ela, coitada, tivesse sequer o vislumbre de uma chance de defesa. Os bárbaros não se contentavam com o espancamento: fotografavam, filmavam, faziam poses sorridentes para postar em suas redes sociais, como se o fato e o feito fosse algo de que se orgulhar.

Ao final, a constatação de uma injustiça: Fabiane era inocente (e se não o fosse, quem houvera dado o direito ao cometimento dessa justiça ancestral?), e muitos dos que contribuíram com sua morte agora se escondem, alguns arrependidos, outros até envergonhados, há até quem colabore com a polícia na identificação daqueles que agiram de forma mais enérgica e, por conseguinte, tiveram uma participação maior no resultado. Mas não é só essa a constatação que fica, fica também a constatação de que nossa sociedade ainda tem muito o que evoluir no que diz respeito à civilidade e ao trato social, pois até mesmo criminosos confessos, sejam quais forem os seus crimes, têm direito a um julgamento e até, pasme, uma defesa.

Confesso, mais uma vez, que o ocorrido me deixou triste. Triste, mas não apenas isso: também fiquei assustado. Fabiane poderia ser qualquer de nós, ou de nossas mães. Você também não ficaria? E por falar em mães, domingo está chegando, e os filhos de Fabiane Maria de Jesus terão, talvez, o pior Dia das Mães que se pode imaginar. Eu, pelo menos, não consigo imaginar um pior. Você consegue?

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Published on May 07, 2014 07:44
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