Bíblia, doutrinação de crianças, e o mito da moral cristã

biblia


Um dos argumentos mais perenes usados pela comunidade cristã em defesa de sua doutrina é o argumento da moralidade. Especificamente, eles alegam que a bíblia contém importantes lições morais, e que um mundo completamente ateu e secular (ou seja, sem nenhuma influência bíblica) seria um total antro de perdição e imoralidade.


Existem inúmeras maneiras de provar o quão hilariantemente errônea essa proposição é; entretanto, eu gostaria de usar um exemplo que vem diretamente dos confins da minha querida infância.


Como já mencionei aqui neste site diversas vezes, nasci em lar cristão. O meu próprio nome (“Israel”, possivelmente o nome mais significativo em toda a cultura cristã depois de “Jesus”) reflete essa inclinação religiosa da família, inclusive. E como tal, eu fui doutrinado nos princípios cristãos (pelo menos, de acordo com a interpretação da nossa congregação, evidentemente — não há muito consenso no cristianismo se você parar e prestar atenção) desde criança.


E um dos métodos que famílias cristãs empregam pra catequizar as crianças é isto aqui:


noé


Livrinhos bíblicos infantis. Eu tinha inúmeros, mas muitos MESMO. Sabe aquela anedota de que nos tempos medievais, tantas igrejas alegavam ter pedaços da cruz de Jesus que se juntassem todos, dava pra montar um navio? Então, eu tinha TANTO livrinho infantil bíblico que se você batesse o olho, julgaria que dá mais história do que contém a própria bíblia.


Eu tinha todo tipo de livro — um novo testamento ilustrado que eu adorava (e que mencionei aqui), livros com desenhos bem cartunescos, livros com ilustrações mais foto-realistas… toda a literatura com a qual entrei em contato entre minha alfabetização e meus 7 ou 8 anos consistia nesses livrinhos cristãos. E eu tinha livros de todas as histórias que você pode imaginar: das mais populares (como a Arca de Noé aí em cima) até as mais obscuras (o encontro de Jesus com Zaqueu, por exemplo, que não recebeu marketing similar e é conhecido mesmo só pelos true aficcionados).


Então, porque estou falando dos livrinhos infantis e da doutrinação que crianças recebem desde cedo em lares cristãos? Bom, pra ilustrar isso, usemos o mesmo livro sobre a Arca de Noé aí em cima.


Você conhece a história de Noé, né? Todos conhecemos. Deus tava revoltado porque a humanidade estava tocando o puteiro, se arrependeu de criar o homem, e resolveu dar fim naquela porra toda. Mas antes de detonar a parada ele informou Noé, o único homem de bem no planeta inteiro, que começasse a construir um barco imenso porque ele estava prestes a afogar todo mundo, num dos raríssimos usos da expressão “TODO MUNDO” que não é hiperbólico.


(Vamos ignorar por um instante o fato de que a menos que Deus executasse uma vasectomia mágica em Noé e seus filhos, o problema “humanos tocando o puteiro no planeta” se repetiria muito em breve, e que este bug no projeto deveria ter sido notado por uma entidade onisciente)


(Vamos também rapidamente ignorar o fato de que o mito da arca existe em diversas outras culturas, em datas ANTERIORES ao relato do Gênesis, e que muitíssimo provavelmente era uma lenda mesopotâmica antiga que foi simplesmente cooptada por Moisés quando este escreveu o Pentateuco — um esquema tipo “vocês ouviram essa história né? Bom, NA REAL foi o nosso Deus que fez as paradas, e foi assim…”)


Então. Quando criança, eu e meus irmãos aprendemos que Deus decidiu salvar uma única família, e chacinar o resto do planeta inteiro — até mesmo animais inocentes que não ganharam a loteria de entrar na arca. Parece um dano colateral absurdo pra um ser onipotente que poderia, se quisesse, executar sua matança de forma mais precisa, mas vamos ignorar isso também.


Se algum de nós questionasse “mas mãe/pai, Deus matou MILHARES de pessoas assim do nada…?”, a resposta inevitavelmente era “ah, mas eles eram pecadores/seguiam outra religião, eles mereceram”. Vamos, novamente, ignorar o fato de que até esse ponto na história dos judeus não existiam regras específicas de conduta — e mesmo quando elas surgiram, eram cheios de mandamentos sem sentido como não comer porco, não usar roupas que misturassem lã com linho, ou não cortar o cabelo.


E note que há gente que defende que a bíblia contém importantíssimos conceitos de moral, ein.


Então. A morte de centenas de milhares de pessoas era relativizada com pouca importância (quase descaso, mesmo): eram pecadores, seguiam outra religião, mereceram morrer. Uma fatalidade global era tratada com um gesto apatético de ombros, como quem diz “ahh, isso aí? Nem dá nada, relaxa”.


Talvez seja mais fácil relativizar a morte de centenas de milhares quando o fato aconteceu milhares de anos antes de você existir. Pra compreender o que o dilúvio de Noé significa em termos mais tangíveis, vamos contextualizar com algo que aconteceu quase 10 anos atrás.


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No dia 26 de dezembro de 2004, um tsunami no Oceano Índico atingiu 14 países naquela região da Ásia com ondas do tamanho de prédios de 9 andares.


Imagina uma onda desse tamanho indo pra cima de você.


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Talvez não seja surpresa que o desastre causou 230 MIL mortes.


Poise bem. O tsunami de 2004 seja talvez o mais próximo que nós passaremos de presenciar um cataclisma nas proporções do dilúvio descrito na bíblia.


Você seria capaz de dizer “ahhh, mas aqueles caras lá da Ásia adoram outros deuses e/ou eram tudo pecadores. Eles mereceram isso aí”…? Você conhece alguém que seria capaz de raciocinar assim…?


Se sim, eu recomendaria ficar longe dessa pessoa. Essa completa falta de empatia com outros seres humanos, a ponto de justificar ou até mesmo trivializar a morte de centenas de milhares (incluindo aí, não esqueça, crianças, idosos, e outros indivíduos de em condições de fragilidade, como pessoas com deficiências mentais), está muito longe de ser uma evidência de “moral elevada”.


Na realidade, essa total apatia com sofrimento e morte humana é uma característica de serial killers. É completamente impensável que se racionalize uma fatalidade de tamanha magnitude, e no entanto, é isso que a bíblia nos ensina.


Pior, é isso que pais cristãos ensinam a seus filhos! A morte indiscriminada de centenas de milhares não é causa pra preocupação ou questionamento da real moral da história; ademais, o cara que CAUSOU essa matança homérica não apenas é o mocinho da história — ele é a mesma entidade que adoramos, em honra da qual escolhemos o seu nome até!


É completamente ABSURDO que se ensine essa história pra crianças usando “ahhhh mas esses caras aí mereceram mesmo, nem se preocupe com isso” como justificativa ou moral da história.


Tendo tudo isso que eu te falei em mente, me diz se o vídeo abaixo não é literalmente ASSUSTADOR:



http://www.youtube.com/watch?v=r8_ZCPnGjog



Não estou usando de hipérbole aqui não. Ver um bando de crianças cantando alegremente que “quem pecar vai morrer” — uma punição que muitos debatemos se é válida em casos extremos, que dirá então quando “pecar” pode simplesmente ser “comer carne de porco” — me causa um arrepio. Chega a ser cartunesco esse total descaso pela vida humana.


Não sei se você reparou, mas o nome da música é DEUS NOS AMOU. Ele criou um lugar pra onde enviará pessoas que não acreditaram nele pra sofrerem eternamente (independente de terem sido boas pessoas ou não), mas ele nos ama. O nível de lavagem cerebral necessário pra conciliar essas duas idéias claramente contraditórias é incalculável — e não é diferente do que acontece com habitantes de países ultra-autoritários, reparem. O regime dos Kim na Coréia do Norte matou, direta e indiretamente, uma multidão incontável. Apesar disso, olha como a galera lá reagiu com a morte do Kim Jong-il:



http://www.youtube.com/watch?v=mSLJYbhXCkE



Dissonância cognitiva é isso aí.


Agora me responde: ISSO AÍ é a filosofia de vida provida de maiores valores morais…?


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Published on January 30, 2014 03:00
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Izzy Nobre
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