Pra não dizer que não falei do Draccon

Inspirado na figura de Thomas Pynchon, Roberto Bolaño, em seu livro 2666, concebeu o escritor misantropo Benno Von Archimboldi (Pseudônimo de Hans Reiter), acerca do qual muito pouco se sabe: os maiores especialistas em sua obra, os críticos Pelletier (francês), Morini (italiano), Spinoza (espanhol) e Norton (inglesa), sabem apenas que trata-se de um escritor alemão do pós-guerra, avançado em idade, que publicou obras geniais no decorrer da vida e nunca, ou quase nunca, ao que se sabe, foi fotografado, entrevistado ou qualquer coisa que o valha, muito pelo contrário: Archimboldi, um dos nomes mais cotados para o Nobel de Literatura, é praticamente um escritor sem rosto. Sua obra, entretanto, é adorada, cultuada, estudada e discutida de forma obsessiva em círculos literários e revistas.

Tal particularidade faz com que os críticos fiquem atentos a qualquer informação aleatória que apareça sobre o escritor alemão: querem convidá-lo para palestrar, discutir sua obra, encher-lhe de perguntas.

O paradeiro e a biografia de Reiter, contudo, são narrados apenas no último livro —“A Parte de Archimboldi” —, onde sua figura, sedutora desde as primeiras páginas do portentoso volume, ganha uma projeção muito maior, levando o leitor a compreendê-lo, admirá-lo, e a encarar sua misantropia como conditio sine qua non de sua fascinante pessoa.

Nos cinemas, por sua vez — Shadows in the Sun (2005) —, o escritor Weldon Parish isola-se numa cidade do interior da Itália há cerca de 20 anos, período durante o qual nada publicou, e o jovem editor e aspirante a escritor Jeremy Taylor é incumbido por seu chefe a encontrá-lo e convencê-lo a assinar um contrato com uma grande editora britânica.

Ainda nos cinemas, William Forrester — Finding Forrester (2000) —, que escreveu uma obra-prima lida e estudada em escolas e universidades americanas, mantém-se recluso com seus livros numa cidade periférica dos Estados Unidos, onde acaba por conhecer o jovem negro Jamal Wallace, verdadeiro prodígio literário, com o qual passa a manter uma relação do tipo tutor-discípulo. Jamal, que enfrenta dificuldades por causa de sua classe social e sua cor, apega-se ao velho Forrester como a um avô, e assume para si a missão de trazê-lo de volta à vida em sociedade.

Fora da ficção, Salinger, autor cultuado no mundo inteiro, muitas vezes pelos motivos errados, criador da curiosa família Glass, do inesquecível Seymour Glass (“Ver mais vidro, ver mais vidro!”) e de um dos momentos mais belos e tristes da literatura ocidental — A Perfect Day for Bananafish — talvez seja o exemplo mais citado: também resolveu se isolar, viver e morrer em reclusão, deixar sua obra por conta própria, a andar com as pernas que ele lhes deu.

Já houve outros como ele, ainda há, e sempre haverá: Coetzee, Pynchon, Clarice Lispector, McCarthy, Harper Lee, Raduan Nassar, Dalton Trevisan, Proust... Rubem Fonseca.

Rubem Fonseca. Um escritor de primeira grandeza em nosso país, nossa língua, nossa Literatura, cuja postura misantrópica foi citada por Draccon (?) como exemplo de algo reprovável em nossos tempos: “Um escritor como Rubem Fonseca”, aduz o autor/editor do selo Fantasy da editora Casa da Palavra, “hoje, não seria publicado.” Argumenta ainda que o autor deve ter a oferecer algo além de sua obra, que sua história de vida e sua personalidade devem ser tão impactantes quanto o livro que escreveu, que o autor introspectivo, que passa o dia em casa trabalhando em seus escritos, já não tem espaço.

Talvez o maior absurdo que eu tenha lido nos últimos dias, certamente o maior no que diz respeito à Literatura. Draccon parece ter uma visão distorcida do que é a arte (Literatura em particular), uma vez que, para ele, a vida e a popularidade do artista/autor possui mais importância que sua obra, quando desde sempre tem sido exatamente o contrário. Na Literatura, a vida do autor sempre foi secundária. Aliás, na arte.

Para usar as palavras do próprio Rubem Fonseca: “Li os Sertões, essa obra-prima de Euclides da cunha, inúmeras vezes (...). E a vida de Euclides, apesar de todos os seus aspectos dramáticos, nunca me interessou. Aliás, não me interessava a vida de ninguém. Não me importava saber, por exemplo que Gauguin era pedófilo, meu interesse era descobrir como conseguia a luz e a cor de suas telas.” (Vastas emoções e pensamentos imperfeitos).

Mas Draccon discorda, e ele não está só em sua linha de raciocínio. Trata-se, evidentemente, de uma visão de mercado, o tipo de visão que coloca Bruna Surfistinha, Padre Marcelo Rossi e Geyse Arruda na lista dos livros mais vendidos, e deixa de lado escritores geniais que, se tivermos sorte, descobriremos algum dia de alguma forma: ou graças a algum editor com bom senso, ou graças ao acaso, ou graças à autopublicação. Prova disso é que o editor do selo Fantasy, que não publicaria Rubem Fonseca hoje, como podemos depreender facilmente de seu enunciado (lembrem-se que o homem se trai por todos os poros), é o mesmo editor que publicou o vlogger Felipe Neto.

Para Draccon, também não basta que o autor tenha “uma vida impactante”, é preciso que ele esteja ativo nas redes sociais (portanto, ele também não publicaria o Jonathan Franzen, que não apenas não possui redes sociais, como também as odeia), que seja submisso, que não critique os colegas — pelo contrário —, pois uma única crítica será suficiente para que o autor seja “cortado” de sua lista. Sim, o que importa para ele é a “união entre os autores” (Tolkien, ao criticar Lewis, também não seria publicado por Draccon. Oh, céus.).

Que tipo de autor gostaria de ser publicado por uma editora assim? É importante que nos façamos essa pergunta, pois existe sim uma resposta óbvia. E cá entre nós: é o tipo de autor do qual eu prefiro manter distância.

Fico com os reclusos, Draccon. Obrigado.

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Published on August 31, 2013 07:55
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