“Formiga”
D. ENCONTROU UM BILHETE ENTRE AS PÁGINAS do seu livro de matemática. Nele, uma declaração e uma pergunta: Eu amo você, a declaração, e Você é gay?, a pergunta. Não estava assinado e a palavra gay estava grafada “gei”, o que para D. era ainda mais absurdo que a pergunta pretensamente... ofensiva? Provocante? Uma forma de desafio do tipo “prove que é macho e me dê atenção”? Não importava. Riu do erro com mais indiferença que desprezo, amassou o papel e o atirou ao cesto de lixo, próximo ao quadro negro manchado de giz.
No pátio da escola, V., seu amigo que estudava na sala vizinha por ser um ano mais velho, sentou-se ao seu lado.
— Você não vai acreditar.
— O quê?
— Eu tenho uma admiradora secreta.
V. sorriu.
— Sério?
— Sim.
— Se ela é secreta, então como você sabe?
— Tinha um bilhete escondido no meu livro de matemática, dizia que me amava e perguntava se eu era gei.
— O que é isso?
— Ela provavelmente quis dizer gay.
— Ah! — V. deu uma gargalhada — Cadê? Quero ver!
— Eu joguei no lixo.
Ficaram em silêncio. Foi V. quem falou primeiro.
— Quem será que é?
— Luciana.
— Quem é essa?
— Aquela da testona que o Elias chama de Formiga.
— Ah, Formiga?! — V. riu até se curvar e perder o fôlego — Logo Formiga?! Cara, sinceramente, eu até preferia ser gay se pra provar ser macho eu tivesse que namorar a Formiga!
— Eu não preciso provar nada pra ninguém.
— E como você sabe que é ela?
— Ela é a única da minha sala que usa uma caneta cor-de-rosa com aqueles negócios brilhosos. A professora até já brigou com ela por causa disso.
V. voltou a ficar em silêncio, olhando para os sapatos.
— Por que ela pensa que você é gay?
D. deu de ombros.
— Deve ser porque eu não jogo futebol, não participo da educação física, não jogo peteca nos professores e nos intervalos prefiro ficar lendo a ter que papear com pessoas com quem não tenho nada em comum.
— Ela também dizia que te amava?
— Sim.
— Que estranho, né?
— É, pois é.
— Eita, olha, lá na porta da tua sala, é ela! Tá olhando pra gente...
— Eu já tinha visto.
— Vai deixar pra lá?
— Vou sim.
E deixou. Outros bilhetes vieram com o passar dos dias, alguns cheios de promessas de amor eterno (“minha vida depende de voçê”), outros de provocações (“V. é seu maxo?”), sempre com erros e imposições.
Mas D. não mudou de ideia. Não reagiu. No fundo no fundo, sentia uma pena sufocante daquela garota a qual os meninos do fundão apelidaram de Formiga, e até certo ponto gostaria de corresponder aos seus sentimentos, o que nunca chegou a acontecer.
Um dia, já adulto, D. sentou-se para escrever uma crônica e, por algum motivo, lembrou de “Formiga” e seus bilhetes amorosos. Sorriu, perguntou-se que fim teria levado aquela moça e, ainda sorrindo, se pôs a escrever.