Tatuando o desamparo

Fonte: FolhaRodrigo Constantino

O que leva alguém a encher o corpo todo de tatuagens e piercings? O tema veio à tona depois que uma jovem moça não só espalhou tatuagens estranhas até pela face, falando em "demônio", como tatuou os próprios olhos de vermelho, e ainda implantou um soco inglês de silicone nas mãos. A bizarrice chocou, e essa só pode ter sido sua intenção: chocar, chamar a atenção, clamar por um minuto de fama (que vai lhe custar o resto da vida desse jeito).

Em meu canal do Facebook, escrevi:  Isso é uma mente muito perturbada gritando por socorro, desesperada para chamar a atenção de alguém, que lhe imponha alguma limite. Não sou médico, nem psiquiatra, nem psicólogo, mas tenho um mínimo de bom senso, e ainda não perdi meu juízo no mundo moderno do relativismo exacerbado. 

Aqui, vou usar os argumentos de alguém da área. Trata-se de Joel Birman, renomado psicanalista, que escreveu um texto justamente com esse título: Tatuando o desamparo - A juventude na atualidade. Com a palavra, Birman:

As crianças e os jovens são muito mais deixados à deriva do que outrora no campo da família, pelo grande número de horas que ficam sem a presença dos pais, que saem para o trabalho. Não obstante a intensa agenda de atividades complementares à escola, a que são aqueles submetidos como um imperativo - esportes, aprendizado de línguas dentre outras - tal preenchimento de tempo não tem a mesma economia afetiva que a presença dos pais. Esses, no melhor dos casos, são substituídos por empregados, que também não têm a mesma incidência afetiva das figuras parentais.

O efeito maior disso é um sentimento de abandono que é provocado, pois, repito, a relativa ausência  materna não foi substituída pela maior presença paterna. A suplência não ocorre, já que o formalismo relacional que marca as atividades escolares e extra-escolares não supre a precariedade de investimentos das crianças e jovens.

[...]

Nesse contexto, os jovens ficam inapelavelmente entregues à cultura da televisão, que acabou por ter freqüentemente muito mais efeitos sobre eles do que os discursos escolar e parental. A exposição precoce à sexualidade e à violência se incrementa e se dissemina, provocando, em contrapartida, modalidades novas de sexuação e o engendramento da agressividade. Esses seriam, com efeito, os únicos meios que os jovens encontram para suprir a carência de cuidados e a solidão de suas existências.

[...]

Tudo isso conflui, no campo das elites e das classes médias altas, para uma condição paradoxal da juventude. Permanecem na casa dos pais, protegidos então por estes, mas querendo levar uma existência de adultos. Passam a viver assim quase maritalmente com seus namorados e namoradas, na casa dos pais. Com isso, a confusão geracional se institui também aqui, pela indiscriminação entre jovens e adultos, isto é, entre filhos e pais. Quem são eles, afinal de contas? Adultos ou crianças? Adolescentes protegidos ou adultos? O quadro que aqui se configura é eminentemente esfumaçado e borrado, com fronteiras e confins mal delineados. 

[...]

Quando a privação relativa se conjuga com a fragilização e a infantilização, declinando tudo isso no contexto social de falta de horizonte para o futuro, não deve nos espantar que as culturas das drogas e da violência se imponham como marcas da juventude hoje. Isso porque as drogas funcionam como antídotos para o sofrimento dos jovens, pelo gozo e pela onipotência que lhes possibilitam, o exercício da violência e da agressividade em geral são as contrapartidas para a impotência juvenil nos tempos sombrios da atualidade. 

[...]

Ao lado disso, diante da falta de horizonte de futuro e na posição infantilidade em que se situam hoje, a juventude se inscreve decididamente na cultura do espetáculo que perpassa a cultura contemporânea. Assim, todos querem ser celebridades e até mesmo como pop-stars, como contrapartida onipotente para a impotência vertiginosa em que estão lançados. 

[...]

A cultura da tatuagem, que hoje se dissemina, é uma das formas de singularização buscada atualmente pelos jovens, diante da invisibilidade identitária que os marca a ferro e fogo. Tal como os antigos marinheiros, lançados que eram na aventura de atravessar os incertos oceanos tempestuosos, sem lenço nem documento, com efeito, a juventude marca o seu corpo com tatuagens como formas desesperadas para adquirir alguma visibilidade, isto é, para ser identificada e singularizada. 

[...] 

Pode-se reconhecer em tudo isso, enfim, o desamparo que caracteriza a juventude hoje, que inscreve e marca dolorosamente no seu corpo, lancetado pelas tatuagens, a sua condição psíquica torturada. 

Entendo que cada caso é um caso, e somente uma análise mais profunda acerca da singularidade de cada um pode oferecer uma resposta mais clara. Mas considero a análise geral feita por Birman bastante acurada para explicar o fenômeno. 

Vale dizer que tatuagens ficaram banalizadas já, assim como drogas mais leves, como a maconha. Portanto, nessa busca desesperada por chamar a atenção e marcar sua singularidade no próprio corpo, a tendência pode ser exatamente essa escalada para drogas cada vez mais potentes e bizarrices tomando conta do corpo inteiro. Em minha leitura, agora corroborada pela análise de um especialista da área, esse tipo de aberração é um desesperado grito de socorro. 
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Published on July 14, 2013 15:01
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