E no aftermath dos protestos na nossa nação, os reacionários saem do woodwork (refutando o texto do Flavio Morgenstern)

brasilia sitiada


Usei dois termos em inglês no título porque sou babaca mesmo. E também porque não consigo pensar em termos equivalentes na nossa língua brasileira.


Então, né. Vocês que estão aí perto da coisa estão acompanhando muito melhor que eu. O povo saiu às ruas de uma forma generalizada que eu não lembro de ter visto em memória recente. Falta uma direção clara nos protestos (essa é de fato minha única insatisfação com o movimento), e nessa ausência de liderança clara e de objetivo tangível os protestos começam a ser cooptado por certos partidos políticos — ao claro contragosto da maioria dos manifestantes.


E a galera do contra começa a “sair do woodwork”, também. Woodwork nada mais é que um elemento da construção civil que não existe no Brasil por sermos abençoados por um clima decente, ao contrário da galera aqui de cima. As casas aqui são sanduíches de madeira, gesso (dry wall é o termo exato) e espuma, que ajuda a isolar a casa termicamente.


E o tal “woodwork”, ou seja, as estruturas de madeira que dão suporte às paredes, ficam escondidas. Dizer que algo está “saindo do woodwork” (“coming out of the woodwork”) significa que algo está aparecendo do nada, surgindo de surpresa. Entenderam?


Então. A galera reacionária começou desde cedo a opinar sobre a situação, e evidentemente chamam a atenção à “trivialidade” dos 20 centavos de aumento da passagem de ônibus, que foi o catalizador da insatisfação.


Um dos textos que li sobre o assunto foi um post no Facebook do ilustre Flavio Morgenstern. Conheço pouco sobre o cara, mas os textos que já li dele mostram que no mínimo o cara manja pra caralho da comunicação escrita. Eis o texto que ele escreveu sobre o que está acontecendo — e nele, penso que ele sintetizou o que boa parte da galera que é contra as manifestações pensa, a julgar pelo número de compartilhamentos e joinhas no post.


Foi a gota d’água na garganta do brasileiro! Agora que o foco é qualquer coisa, “o gigante acordou”!

A verdade é que eu nem pisco pra 50 mil homicídios por ano, quando a caracterização de guerra civil é em 10 mil. Eu tolero R$ 1,5 trilhão em impostos também por ano ano, o que nos deixa mais ou menos com 30 fodendo MILHÕES de reais para evitar CADA homicídio nesse país.

Eu tolero mensalão, PEC 37, transformar o STF em escritório de advocacia do PT (Toffoli, Lewandowski, Rosa Weber e Barroso lá nem fazem diferença, mesmo). Eu tolero o salariozinho de merda até de deputado que não é corrupto.

Eu agüento no rabo impávido e colosso que tudo o que custa US$ 10 na América aqui saia pela bagatela de 80 mangos, mas é tudo para proteger os pobres e fazer distribuição de renda com impostos, porque certamente estamos diminuindo muito a desigualdade social fazendo com que só rico possa ter carro importado, enquanto o pobre tem de usar ônibus cartelizado pelas únicas empresas cupinchas da prefeitura (ou seja, do prefeito), financiando ainda mais os bolsos do Estado.

Aliás, também tô cagando e andando um torosso federal pro preço da gasolina, mais cara da América Latrina e uma das mais caras do planeta. Isso tudo porque eu amo a Petrobras e engulo ao invés de cuspir a litania de que ela é “do povo”, ainda mais pra dar uma rouanetada e projetar a “cultura”, porque gente é o que inspira a gente (mas só quem se favorece é grande “artista” – o petróleo não é nosso, é do Tico Santa Cruz e da Maria Bethânia), mesmo que, quando eu vá no posto, dizer que o petróleo é meu só faz o frentista me mandar alargar meu anel rugoso.

E meu hímen complacente também agüenta fundo que esfarelem qualquer proteção que o indivíduo tenha contra o governo, que aceitem cortes internacionais aumentando o poder com uns vizinhos maravilhosamente democráticos como os nossos, porque sei que o comunismo já era, e assim que caiu o Muro, 100% dos que acreditam em Marx no mundo se convenceram de que aumentar o poder do Estado não vale a pena da noite para o dia.

Sobretudo, eu suporto no cangote sem chiar que nossa cultura não mereça senão as duas primeiras letras, que sejamos o único país no planeta em que a literatura não espelhe em nada a realidade atual, que tudo o que se diga seja sobre a ditadura militar, que os estadunidenses malvados estão nos manipulando e tudo se resolverá com mais educação, mesmo que eu não saiba o que cazzo se ensina numa faculdade de pedagogia.

E eu não movo uma palha contra gente concentrando o poder e me obrigando a trabalhar até maio todo ano para financiar suas mordomias e têm passagens semanais pagas porque ninguém agüenta viver na soviética Brasília, enquanto uma viagem de avião custa o preço de um rim em aeroportos que só não causam mais acidentes por milagres, e mesmo quando matam centenas de pessoas de uma vez enquanto jornais governistas dizem para mim no dia seguinte que a pista estava em ótimas condições, eu só vejo nisso um motivo para falar “chupa, Jornal Nacional!”

E o que são 60 mil mortes no trânsito por ano, senão acidentes de percurso? O que é a inflação, senão um fato da vida, que um governante nunca, sob nenhuma hipótese, iria causar para financiar seus gastos luxuosos sem precisar aumentar impostos, e depois pedir voto dizendo que a inflação tá difícil de controlar, mas vamos vencer esse mal terrível fazendo o dinheiro do pobre valer menos que papel higiênico usado? Eu nem sei que o preço do tomate aumentou 150% em um mês, porque minha consciência política é de poder popular de Vila Madalena, e nunca fiz feira uma única vez na vida.

E estou me lixando para termos uma maioridade penal cabível talvez no Paraíso muçulmano enquanto assassinam 3 pessoas incendiadas porque elas não tinham dinheiro o suficiente e ainda compro uma verborréia mela-cueca de que a culpa dos assaltos é dos assaltados, invertendo sempre sujeito e objeto e culpando a classe média e outras generalidades da qual eu mesmo faço parte. Isso dá para suportar numa boa, afinal, querer mudar isso é coisa de fascista extremista.

Mas aí aumentam o preço da passagem de ônibus em R$ 0,20 e o PSTU organiza um protesto, toma um spray da PM depois de explodir uma bomba no metrô e vandalizar a cidade inteira e agora está todo mundo contra tudo isso que está aí.

Aí não deu para agüentar. Foi a gota d’água. O gigante agora acordou e vou protestar exatamente quando o PSTU me mandar, porque minha consciência política vai mudar o mundo e os governantes vão finalmente me temer.

Agora é muito mais do que R$ 0,20 centavos e serei completamente apartidário, porque sei colocar a importância das coisas em perspectiva. Foi a gota d’água.


Eu achei que a essa altura todos estariam perfeitamente educados sobre o movimento pra não mandar mais a falácia do “mas tudo isso por 20 centavos, mimimi, que bobagem!”, e aparentemente estou errado porque esse post do Flávio foi de ontem.


A questão realmente não é nem essa; o problema que eu tenho com esse texto é que o argumento central é “se vocês não fizeram nada por causa das injustiças X, Y e Z, não podem fazer mais nada de agora em diante”. Soa como birra, como capricho de criança — ahhh vocês não aderiram às causas que EU acho mais importantes? Não importa que essa revolta também reinvindique por muito daquilo que eu espero do governo. Agora eu não quero mais. Ou tinha que ser quando eu queria, ou então nada. Me dá a bola e eu voltarei pra casa.


É uma pena que o catalizador da revolta tenha sido o tal aumento de passagem porque evidentemente alguns (muitos?) vão desmerecer toda a mobilização só por causa disso.


Como se o aumento de 20 centavos por passagem, multiplicado por 2 (a ida e a volta), vezes 5 dias por semana, vezes o número de familiares cujo transporte o pai trabalhador precisa custear fosse mixaria. Queria saber se as pessoas que julgam esse aumento trivial estariam dispostos a doar, todo ano, mais ou menos trezentos reais para uma família aleatória (com hipotéticas 3 pessoas que dependem do transporte público) cuja renda foi afetada com o aumento. Enquanto não há melhoria alguma no tal transporte.


Meu problema real com a manifestação é mesmo a falta de liderança, de reinvindicações claras. Há muito ruído e pouca mensagem. Querem o que, “acabar com corrupção”? Isso todos queremos (embora seja literalmente impossível). Sem um objetivo claro, como poderá haver mudanças…? Sem contar que a falta de foco permite que organizações se apossem do movimento.


Já tenho visto por exemplo montagens da bandeira nacional com versículos bíblicos, batendo na tecla do envolvimento de religião com política que historicamente só dá merda.


Mais importante que o impeachment da Dilma, que vi muitos pedindo — o Brasil ficou uma beleza quando chutamos o Collor? Acho que não, viu –, é estabelecer no Brasil a cultura de que não deixaremos esculhambações passarem em branco. Isso sim é uma mensagem um pouco mais poderosa e direta. Por exemplo: imagine se víssemos manifestações iguais ou em maior escala sempre que um político corrupto é absolvido pelos amiguinhos de rabo preso. Ou quando estes mesmos tentam aumentar o próprio salário.


Talvez, com alguma sorte, estabeleceria-se a impressão política de que é melhor não fazer essas coisas porque o povo vai tocar o puteiro. De repente eles pensariam duas vezes antes de fazer certas coisas.


E no final das contas, isso talvez seja o melhor resultado dessa confusão toda. Por mais que a turma reacionária se oponha e bata o pé, diga que é apenas por causa de 2 moedinhas de 10 centavos, se isso servir pra acabar com a nossa histórica apatia política foram vinte centavos riquíssimos.


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Published on June 18, 2013 08:55
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