Na morte, disse Pedranceiro, sensibilizado pela tristeza da criaturinha,
todos os bichos são iguais. Não há mais fortes ou mais rápidos, ou mais tolos ou mais sábios… Todos são iguais, todos silenciosos. A única voz que resta, capaz de falar por eles, é a nossa, a dos que estão vivos. Devemos lembrar-nos dos nossos amigos com amor e pensar “Bem feito.”Porquê “bem feito”, Pedranceiro?, perguntou Batalha.
O que é que “bem feito” significa?Quando um pedreiro assenta um bloco entre os outros, disse o homem de pedra,
ele tem de encaixar-se com os restantes: nem maior, nem mais pequeno. Tem de ser perfeito. Nós, pequena pedra-de-toque, somos como os blocos, estás a ver? Temos de nos encaixar uns nos outros. Um amigo, ou um companheiro, como o teu Rifão, é alguém que encaixa connosco e isso é muito bem feito. Só quem trabalha com a pedra pode perceber o quanto é difícil esse trabalho de encaixe. Pode correr mal de tantas maneiras diferentes, as pedras partem-se, inutilizam-se, não servem para nada. É muito triste não servir para nada. Por isso, pequeno Batalha, deves lembrar-te da tua amiga e dizer “bem feito”, porque tu e ela encaixaram. Tu e ela serviram. Isso é uma coisa grandiosa.
Obrigado, disse Batalha, comovido.
Acho que ela iria gostar muito de te ouvir.
Quem sabe se não ouvirá?, comentou Pedranceiro, levantando-se. Pousou a mão no tronco do castanheiro.
Sou capaz de ouvir as pedras… As montanhas e os leitos irregulares dos rios… Nem sempre falam, porque são muito desconfiados, mas as histórias que já ouvi deles, pequena pedra-de-toque, são suficientes para preencher muitas vidas. Baixou-se e bateu com um dedo no chão.
Há nobreza na terra, Batalha. Dignidade. Uma alma. Voltou a levantar-se.
Eu sei, porque sou capaz de ouvi-la. Ouço-a como se fosse um fiozinho de água que tenta escorrer entre as rochas: sempre a furar, a furar. Por isso, quem sabe se os nossos mortos são capazes de ouvir-nos, também. Se não fores capaz de escutá-los durante o dia, tenta escutá-los à noite. À noite? Nos teus sonhos, disse Pedranceiro. Aproximou-se de Batalha e de Rifão e, acocorando-se, declamou:
Morrer, tarde ou cedo, é uma infelicidade,mas é nos sonhos que está a imortalidade.Neles, os que amamos não parecem ter partidoe nessa efémera convivência nada está perdido.Até à altura, é certo, de seres tu o seu jazigo,pois quando morreres, eles morrerão contigo.Mas quem sabe se a morte é uma passageme a nossa existência só uma aprendizagem? Quem sabe?, comentou Batalha, coçando os bigodes.
Talvez não seja passagem nenhuma e apenas nos sonhos possamos falar com os nossos mortos.
Mas e se for, pequena pedra-de-toque?, perguntou Pedranceiro.
Achas que seria uma coisa assim tão má? Batalha não respondeu.
Não, disse Rifão, lembrando-se do mestrinho com afeição.
Não seria. Aproximou-se de Pedranceiro e lambeu os dedos que este lhe ofereceu.
(Excerto do meu romance
Batalha. A ilustração mostra o cadáver da porca Fraca-Chicha a ser comido pelos corvos e foi desenhada por Daniel Silvestre da Silva. Edições Saída de Emergência, 2011.)
Published on March 09, 2013 10:14