I. P. O.
Finita. Entreguei o meu corpo e sou - estou - finita. Tive a sorte de arranjar uma cadeira na sala de espera de Hematologia, tu ficaste de pé a manhã toda. Eu pensava que era rara. Quantos sangues doentes, afinal? Fui ao passado enquanto estive prensada entre a senhora da tv guia e o rapaz de trinta e cinco anos e cabeça meneante enfadada com o destino. Tu, de pé e sem posição, sempre em cima da senhora e debaixo da (minha) censura, resolveste ser olímpico e perguntar-me "sempre tens visto a Gabriela?". Vivemos na mesma cama e, tu sabes, não gostamos de novelas, nem sequer desta "Gabriela", mas tu, olímpico, foste buscar a senhora à sombra e puseste-lhe a matéria branca a perscrutar uma oportunidade. "Dá a que horas?", perguntaste. "Às dez", disse ela. "Às dez? Tão tarde? Não é às nove e meia?", "Não, começa antes da da quatro acabar", disse ela. O primeiro sorriso. "A Sónia Braga ainda mete a Juliana Paes num bolso", adiantaste, e eu a pensar, "como é que ele sabe o nome desta?", mas afinal estavas a pescar o rapaz - um sangue jovem ferve de incompreensão, mas as tuas saídas frívolas trouxeram-lhe o quarto sorriso, depois do meu e do teu, gaguejou, desistiu. Diga, diga. "Eu", disse ele, "eu gosto muito da Juliana." Ahahahahahah. A sala reagiu com inquietação. Dormência. Lembras-te de quando entrámos? Era a nossa primeira vez. Meteste pela cirvunvalação, que era melhor e tal, eu já te tinha explicado que pela ponte do freixo saías depois do dragão para paranhos, mas tu meteste pela circunvalação. Não querias deixar o carro no parque, mas os meus ossos já não aguentam, uma dor nível sete de zero a dez nos piores momentos - e não tem havido melhores. Ninguém viu o alerta. Em ano e meio, ninguém se sobressaltou com o pico de proteína. Agora já não podes procurar lugares gratuitos. Hoje foi a nossa primeira vez no I.P.O. Não há primeira vez sem medo. Entrámos de mão dada, a minha direita na tua, o teu braço esquerdo a amparar-me. "Fica aqui no bar enquanto dou sinal de ti no guiché das consultas". Tanta gente. Tanta, tanta gente. Que importância temos? Pouca, muito pouca, talvez a altura da alma, nem mais um centímetro. Marcha lenta na fila do bar e a sala de hematologia cheia. Como é que servem cafés a pessoas em absoluto sofrimento? Ou as pessoas em absoluto sofrimento não vêm tomar café? Tanta gente e tu de pé, eu enfiada entre pessoas enfiadas. Eu a pensar disparates, que vida a minha, como vim aqui parar, voltei às vésperas do baile em que te conheci há cinquenta anos, eu nua ao espelho que a mãe tinha no quarto, o corpo sem mácula, pronta para ti. Tinhas pedido a minha mão ao papá se soubesses que, cinquenta anos depois, me tinhas de amparar na igreja, nos degraus de casa e aqui, no lugar onde ninguém está por capricho nem há pulseiras de triagem? Sabes se é aqui ou no outro pavilhão? O de radioterapia está totalmente renovado, é um dos melhores do mundo. A tia tinha razão quando dizia que aqui as pessoas entram menores e saem maiores. Muito maiores. O médico a perguntar o que queria eu para o meu futuro. "Ver os netos a crescer". É isso mesmo que vai ter. Mal escolhido, lembraste tu cá fora. Estão já todos maiores do que nós. Como nos rimos. Estava um perfeito sol de setembro e tu perguntaste-me se eu queria ir comer qualquer coisa em frente ao mar e eu respondi que só queria uma cama para me deitar. Apesar das dores, que aumentam quando me deito, às vezes um oito, eu só me queria deitar. Ainda não se sabe de nada ao certo. Tu a falar de perucas com voluntários. Se se confirmar, isto virou doença crónica. As punções magoam menos. E até te ouvi dizer, em surdina, "o momento mais duro para ela foi quando estávamos sentados no bar (outra vez o bar), à saída, para ela comer qualquer coisa (não tinha comido nada todo o dia) e ela olhou para o cartão que lhe fizeram e disse baixinho: "Um cartão do I.P.O. em meu nome...." Então saí maior. Banalizou-se tudo menos o tempo. As filas na VCI era bonitas, íamos devagar a falar do dia, tu fazias-me mais festas na mão do que o costume. Não me importo que olhem para mim com medo de me perder. Já não tenho coisas pequenas comigo e as finais são para se ganhar. Comecei hoje a ver a "Gabriela". A Juliana Paes não se compara à Sónia Braga. Os planos são de plástico. Gosto da Maitê na Sinhazinha. Desta Malvina. Vou ver os netos crescer se passarem do metro e noventa. Segunda-feira voltamos. Segunda-feira voltamos e, como tu disseste, vais finalmente poder iniciar a senda por caras bonitas sem o primeiro medo. Não nos lembraremos da glória do passado. E eu terei no meu regaço a solidão que tu sacodes com gargalhadas e conversas de novelas.
PG-M 2012fonte da foto
Published on September 13, 2012 18:09
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