Hoje, a palavra norte-americana
geek (sem tradução directa para língua portuguesa, mas cujo sentido se contígua ao transmitido pela palavra
anormal) é, quase em exclusivo, utilizada para designar o arquétipo do adolescente tímido, "caixa de óculos" e sem competências sociais, que é obcecado por tecnologia e banda desenhada, mas, em outros tempos, principalmente na transição do século XIX para o XX, o nome
geek era dado aos artistas dos circos e feiras ambulantes que, nos seus espectáculos, comiam cabeças de galinhas, cobras e ratazanas vivas.Na imagem acima, fotografada no ano de 1938 na cidade norte-americana de Donaldsonville, no estado do Louisiana, pode ver-se um
geek autêntico a trincar a cabeça de uma serpente para gáudio da assistência. De maneira geral, estes artistas eram indivíduos simplórios ou padecentes de doenças mentais que aceitavam ou eram obrigados a participar em desafios de natureza aberrante, como os de comer insectos e cabeças de répteis e roedores. O
New International Dictionary of the English Language (1954) oferece esta definição de
geek:
«um "homem selvagem" circense que comia as cabeças de cobras e galinhas vivas nos seus espectáculos». É uma designação que provém de
geck, quinhentista palavra inglesa que significava
louco ou
imbecil e que, por sua vez, teve origem no nome holandês
gek, que possuía o mesmo sentido.
A lamentável figura do
geek das feiras itinerantes foi popularizada junto do grande público pelo filme
Nightmare Alley
, realizado em 1947 pelo cineasta inglês Edmund Goulding e que estreou dois anos depois em Portugal com o título
O Beco das Almas Perdidas
: neste filme, que adapta o romance homónimo do escritor norte-americano William Lindsay Gresham, publicado em 1946, o actor norte-americano Tyronne Power interpreta a personagem Stan Carlisle, vigarista que, a dada altura, por culpa de um reverso de fortuna, se vê obrigado a fazer de
geek numa feira para ganhar a vida. No início da década de oitenta do século passado (no ano de 1981), o músico inglês Ozzy Osbourne também fez de
geek, mas acidentalmente, quando, embriagado, comeu a cabeça de uma pomba viva durante uma reunião de trabalho com executivos da distribuidora discográfica Columbia Records. Não deixa de ser interessante que essa empresa tenha ido buscar o seu nome à personagem Columbia: a personificação feminina e republicana (com barrete frígio e tudo) dos Estados Unidos (que, entretanto, perdeu popularidade em relação à simbologia romântica oferecida pela Estátua da Liberdade) e cujo nome é uma variação do apelido do navegador genovês Cristovão Colombo, o descobridor oficial do Novo Mundo - em latim,
columbus significa
pombo).
Se a primeira mudança de sentido da palavra
geek, de
imbecil para
anormal de feira, é, mais ou menos, linear, não é clara a sua transformação em
adolescente, embora se possa especular com segurança que a popularização desse significado ocorreu a partir de 1984 com a estreia do filme
Sixteen Candles
(
Dezasseis Primavera
s
), a primeira longa-metragem do cineasta norte-americano John Hughes, no qual a personagem intepretada pelo actor norte-americano Anthony Michael Hall é conhecida como Geek.
Contemporânea do
geek de feira norte-americano, outra personagem grotesca - avatar (praticamente esquecido) da psique popular - que dava pelo nome de Xexé, foi uma visão comum, e "temida", nas ruas de Lisboa durante os dias de Carnaval. O período áureo do Xexé terminou em meados da década de trinta do século passado, quando esta personificação do Antigo Regime perdeu, em definitivo, referentes com a vida de todos os dias.
Vestido de casaca de seda, bicórnio e cabeleira, como se fosse um nobre setecentista, munido com um bastão, um facalhão e um par de cornos, o Xexé é uma caricatura fidalga, projectada pelos populares, que veio a ser entendida no século XIX como sendo uma sátira aos partidários miguelistas. Os chavelhos, elementos decisivos na composição da sua figura, remetem para o velho hábito olisiponense de pendurar-se cornos nas portas das casas dos indivíduos a quem se queria chamar de "cornudos": verdadeira febre que incendiou a imaginação dos lisboetas da primeira metade do século XVIII e a que D. José tentou dar o fim com uma lei datada de 15 de Março de 1751. Desse modo, o Xexé será, sem dúvida, uma síntese desse humor popular, ordinário, com o estilo mariálvico de quem pertence ao escol, mas prefere imiscuir-se com a ralé. Por ser uma personagem retrógrada, pertencente a uma memória que o grande terramoto de 1755 não debilitou totalmente, o Xexé costumava ser representado como sendo um velho lascivo, afectado por tiques de embriaguez, que importunava com veemência aqueles que com ele se cruzavam na rua - e daí o nome "xexé" que se dá, tantas vezes, aos velhotes já acometidos de senilidade. No início do século XX, com o advento da primeira república, as lúbricas brincadeiras dos xexés e das chamadas "caqueiradas" (chuvas de águas sujas, dejectos e quinquilharias que, das janelas, se jogavam sem piedade para cima dos transeuntes) perderam popularidade para um Carnaval cada vez mais cosmopolita, pensado como grande espectáculo colectivo, e cada vez menos um intervalo de ruptura.
O nome Xexé, cuja grafia deixa uma suspeição de proveniência galega, poderá ter uma origem onomatopaica, do mesmo modo que o nome
gagá, que retém um sentido parecido.
Gagá é uma onomatopeia que deriva da palavra francesa
gâteur: pejorativo calão hospitalar, usado pelas enfermeiras e pelos médicos, que significa
velhote que mija na cama e que veio, seguidamente, a veicular a ideia de senilidade. É, pois, possível que
xexé possa derivar de
xixi, relacionando-se assim com a ideia do velhote senil que já não tem capacidade para controlar-se, inclusive controlar o seu próprio corpo, e a quem tudo (ou quase tudo) é permitido? É uma contribuição que deixo para a resolução deste enigma.
Seja como for, o badalhoco, bafiento e impertinente Xexé - tão descabelado quanto um
geek de feira - foi, provavelmente, o último dos anormais "alegóricos" de Lisboa: espécie de Careto urbano de um Carnaval popular, tipicamente lisboeta, que foi substituído pelas manifestações assépticas das marchas bairristas e das celebrações turísticas dos santos populares.