o trabalho alienado

I.

em 1981, foi publicado no brasil o livro de istván mészáros, marx's theory of alienation, na tradução de waltensir dutra, marx: a teoria da alienação, pela zahar editores.




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em 2006, a boitempo editorial publica a teoria da alienação em marx, com tradução em nome de isa tavares, com reimpressões em 2007 e 2009 e uma nova edição com atualização ortográfica em 2011.




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IIa.

ao examinar os dois volumes, não há como não perceber a absoluta identidade entre a tradução de waltensir dutra e a suposta tradução de isa tavares para os versos de schiller: 












ou aqui, onde a única diferença da tradução em nome de isa tavares consiste nos itálicos de alguns versos:





waltensir dutra (zahar)

Que o grito da ralé passe por cima de ti
E o grunhir dos porcos extravagantes!
De nenhum homem livre tens medo,
Nem do escravo que conquistou a liberdade. 


E há um Deus, cuja vontade compele
A mente indecisa do homem:
A lembrança dos céus supera
Toda possibilidade de conhecimento.
Embora o mundo viva em eternas vicissitudes
Há sempre repouso para a alma tranquila. (p. 268)







isa tavares (boitempo)

Que o grito da ralé passe por cima de ti

E o grunhir dos porcos extravagantes!

De nenhum homem livre tens medo,

Nem do escravo que conquistou a liberdade. 




E há um Deus, cuja vontade compele

A mente indecisa do homem:
A lembrança dos céus supera
Toda possibilidade de conhecimento.
Embora o mundo viva em eternas vicissitudes
Há sempre repouso para a alma tranquila. 
(p. 271)


o mesmo fiel decalque pode ser visto na citação de fausto de goethe. 








essa pura cópia se repete nas notas, que não sofreram praticamente nenhuma alteração. segue-se uma nota bastante extensa para ilustrar o fato apontado:






















IIb.

no texto propriamente dito, é difícil não notar como são esporádicas e perfunctórias as diferenças entre as duas traduções. elas se concentram majoritariamente no mais singelo nível lexical, fazendo lembrar aquilo que saulo von randow jr. chamava jocosamente de "tradução por sinonímia", isto é, a substituição de vocábulos de uma tradução prévia para "melhorar" e disfarçar a cópia, apresentando o texto assim alterado como outra tradução, pretensamente nova.  



apesar da linguagem razoavelmente simples de mészáros, notam-se, de um lado, alterações vocabulares bastante triviais de um para outro texto ("rigorosa igualdade" por "estrita igualdade"; "conseguir o domínio" por "alcançar o domínio"; "fundamentos firmes" por "fundamentos sólidos" etc.); de outro lado, observam-se similaridades nas estruturas sintáticas e alguns vezos bastante particulares de linguagem ("[marx] não tinha mais de parar no ponto de postular", "deu um grande passo à frente", "suposições muito exageradas são feitas", e assim por diante).veem-se também frases inteiras idênticas, como "as razões pelas quais essa determinação política passa a existir podem, é claro, ser muito variadas, desde um desafio exterior que ameaça[ce] a vida da comunidade, até uma localização geográfica que estimule uma acumulação mais rápida da riqueza; mas seu estudo não cabe[,] aqui" ou "o artista tornou-se livre para escolher, sob todos os aspectos, o assunto-tema [sic] de suas obras, mas ao preço de dúvidas constantes sobre sua relevância". seguem algumas imagens exemplificativas:








 






III.

perante tantas identidades e semelhanças difíceis de explicar pela mera coincidência, entrei em contato com a editora boitempo. eu tinha também algumas dúvidas sobre outras edições da casa, e ficaram de apurar as informações que pedi (algumas já divulguei aqui, aqui e aqui). explicaram-me que, de fato, a casa tem como praxe utilizar, "sempre que possível", traduções pré-existentes. ora, não vejo como a "revisão" de um texto poderia em qualquer hipótese autorizar ou justificar a omissão do nome do verdadeiro tradutor e sua substituição pelo do "revisor" da obra traduzida* - pelo contrário, até onde sei, tal procedimento fere frontalmente nossa legislação, isso sem falar no desdouro que acarreta indiretamente para toda a categoria dos lídimos e honestos revisores.





IV.

a meu ver, o principal aspecto que se destaca na obra de tradução marx: a teoria da alienação é que ela constitui um claro exemplo de obra abandonada. até onde sei, ela teve apenas uma edição, a já referida de 1981. seu autor, waltensir dutra, faleceu em 1994, quando, aliás, ocupava a presidência do sintra (sindicato dos tradutores). a zahar editores se reestruturou em 1985, passando a ser jorge zahar editora. entrei em contato com a jorge zahar, que me informou que boa parte do catálogo da antiga zahar foi transferida para a koogan guanabara - mas marx: a teoria da alienação não parece constar no catálogo ativo desta última. ou seja, tudo indica que se trata de obra de tradução esgotada e abandonada, de autor falecido, cujos sucessores (se os há) não estão exercendo a guarda de seus direitos.




assim, largada no fundo do baú, à solta no limbo editorial, a tradução de waltensir dutra, pelo que consigo entender, foi retomada pela boitempo, submetida a uma revisão cosmética e publicada como de autoria de isa tavares, passando a engrossar o catálogo da editora. com tal artifício, a editora recriou para si todo um novo leque de pretensos direitos autorais sobre ela: um novo ciclo inteiro de proteção agora pertencente à suposta tradutora isa tavares e a seus herdeiros durante setenta anos após sua morte, e um novo copyright agora pertencente à boitempo. o fato de ter a editora me assegurado, naquela época em que a consultei a respeito desta obra, que "Muitas vezes isso não significou inclusive qualquer diminuição nos valores pagos, tendo sido os tradutores [?] remunerados integralmente ao reverem antigas traduções que foram por nós republicadas" não me parece anular a grande questão que se revela nesse tipo de procedimento: além de ilícito, a meu ver demonstra um acintoso desrespeito à tradução legítima e ao trabalho legítimo dos legítimos tradutores. 



V. 

a editora anunciou aqui suas providências quanto a outras duas edições bastante problemáticas, conforme apontei aqui, e declarou que "está revisando outros trabalhos da mesma tradutora", isa tavares. espero que entre eles esteja incluído o caso acima apresentado.



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Published on August 02, 2012 14:00
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Denise Bottmann
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