Samba do regresso


Salários altos, crise na Europa e a eterna saudade levam os imigrantes brasileiros a voltar a casa. O Brasil está em constante mudança e a chegada de milhares de compatriotas com experiências em Tóquio, Lisboa ou Nova Iorque vai influenciar o modo como se irá viver e trabalhar nas grandes cidades brasileiras






“Pode ir armando o coretoE preparando aquele feijão pretoEu tô voltando”

Quando os cariocas regressam ao Rio de Janeiro para viver, depois de anos a trabalhar no estrangeiro, praticam um constante jogo de diferenças durante o período de adaptação. O que mudou, o que é diferente entre cá e lá? Mariana Gorman, 33 anos, ilustradora e estampadora, voltou de Madrid há um ano e espantou-se com o custo de vida, com a voracidade do consumo e com o face liftda cidade onde nasceu: “Em Madrid havia cada vez mais mendigos, não era possível estar num café sem que alguém viesse pedir um trocado. Quando aqui cheguei, vi que havia menos gente pedindo na rua, menos crianças. Houve uma subida no nível de vida das classes mais baixas e há menos violência.”Tal como Mariana, muitos brasileiros trocaram o impasse e o desemprego da Europa e dos Estados Unidos pelo Brasil dos salários altos e da confiança nas suas capacidades de potência em crescimento. Nos últimos quatro anos a Europa perdeu quatro milhões de empregos. O Brasil criou três milhões.
Em Portugal, segundo o Instituto do Emprego e Formação Profissional, logo em 2008 o desemprego entre imigrantes brasileiros duplicou: mais de dez mil inscritos entre uma população de 106 mil imigrantes legais. Em 2010 a taxa de desemprego entre os imigrantes, 19 por cento, foi quase o dobro da média nacional. E entre Janeiro e Outubro de 2011, inscreveram-se, em média, 179 pessoas por mês no Programa de Retorno Voluntário, que ajuda imigrantes sem recursos a regressar ao seu país – durante todo o ano de 2007 tinha havido apenas 320 inscrições. Segundo o Banco de Portugal, nos dois primeiros meses de 2011, o valor de divisas enviado pelos brasileiros para casa foi 11,2 por cento menor do que no mesmo período de 2008.
Embora ainda não haja números definitivos sobre o retorno de imigrantes brasileiros no último ano, o ministério das Relações Exteriores já mandou as suas embaixadas e consulados fazer levantamentos, e em São Paulo abriu o primeiro Núcleo de Apoio e Informação a Trabalhadores Retornados do Exterior.
Os brasileiros regressam de Londres, de Nova Iorque, de Tóquio – desde 2007 voltaram para casa 70 mil imigrantes brasileiros no Japão, 20 por cento da comunidade. Fogem da crise e querem aproveitar a pujança do Brasil. Mas a decisão de regressar a casa costuma ter também uma motivação emocional.
Júnior Isnoldo, que chegou a Lisboa em 2001, com 23 anos, abandonando o emprego de venda de seguros pela promessa de um conhecido que imigrara para Portugal e que vivia no Cacém, voltou agora para Oswaldo Cruz, uma cidade de 34 mil habitantes a 700 quilómetros de São Paulo: “Em 2001 disseram-nos que lá estava bom, confortável, que havia condições. Casei com a minha namorada e fomos.” Começou a trabalhar como servente de calceteiro, três meses depois agarrou um emprego num restaurante e lá ficou durante nove anos. Em Fevereiro de 2010 veio visitar a família e alguma coisa mudou: “Os meus pais envelheceram, os meus sobrinhos estavam crescendo e eu não queria perder isso. Mas não foi fácil, sinto que deixei outra família em Portugal.”
Júnior trabalha agora como eletricista e diz que a vida lhe corre bem: “Nestes dez anos que estive fora houve muito crescimento na minha cidade, vejo as pessoas com um poder de aquisição muito grande. Mas tudo está mais caro, mais caro que em Portugal. Onde moro nada é barato.”
O regresso traz mudanças na face das grandes cidades brasileiras. O bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, é agora morada e lugar de trabalho de financeiros que voltaram de Londres e Nova Iorque. No bairro, há cerca de 30 “butiques financeiras”, como aqui se chamam os escritórios das empresas como Hamilton Lane, Behavior Capital ou Cypresse. Hoje, essas “butiques” do Leblon gerem 68 mil milhões de reais – há três anos esse valor era de 25 mil milhões.
O bairro encareceu, os proprietários duplicaram as rendas de casa – duplicaram mesmo – e por vezes as lojas e os restaurantes estilizados fazem lembrar o SoHo nova iorquino. Foi esta cidade em bicos de pés, tentando aproximar-se de outras capitais globais, que Tomás Salles, 34 anos, veio encontrar depois de sete anos a viver em Nova Iorque, onde estudou e trabalhou com efeitos especiais 3D para cinema e publicidade: “Custou a me adaptar a esse trânsito carioca, lá eu não tinha carro.” O crescimento do Rio também se faz à custa de filas de automóveis cada vez mais longas, que pioraram muito nos últimos anos de desenvolvimento da metrópole. Há mais gente na rua, gasta-se mais, sente-se o rumor constante dos motores e das máquinas de pagamento por cartão. O Rio é ruidoso e intenso.
Quanto Tomás saiu não era assim. E Nova Iorque era a promessa maior. Agora quem promete é o Rio: “Não tinha um aumento salarial há dois anos, as empresas não estão bem, era cada vez mais difícil negociar um salário. Também não é fácil viver em Nova Iorque com dois filhos. E agora o cinema brasileiro está bem, cresceu e melhorou muito, há vários filmes que chegam aos quatro milhões de espectadores.”
O estudo da consultora Michael Page, que mostrou recentemente que os salários de quadros superiores no Brasil ultrapassaram os valores pagos na Europa e nos Estados Unidos, revela que acontece o mesmo com os bónus pagos a presidentes e funcionários brasileiros no final do ano. O Brasil, que substituiu o Reino Unido no ranking das economias mundiais – sexto lugar – tem argumentos para atrair aqueles que até estavam bem no outro lado do oceano.
Em 2000, Fabiano Bonfim, diretor de arte numa agência de São Paulo, tinha o sonho de trabalhar na Europa. Lisboa seria apenas um lugar de passagem, uma estação no caminho para outra cidade mais apetecível: Londres. Mas Fabiano ficou, gostou, não foi capaz de seguir a rota para norte: “Portugal é um país fantástico que se vende muito mal.” Fabiano passou pela FCB e pela BBDO, fez campanhas para grandes clientes, mas, aos 41 anos, com filhos e mulher brasileira, aquilo que em outras ocasiões fora uma possibilidade tornou-se, com a crise, numa certeza: “Juntou-se a saudade dos parentes e a falta de perspectiva em Portugal. Tenho amigos portugueses que estão saindo, as empresas andam desmotivadas, todo mundo começou a segurar, a cortar.”
Quanto à galinha brasileira dos ovos de ouro, Fabiano é prudente, tal com diz que têm sido as autoridades brasileiras. Não embarca na euforia de alguns, mas também não acredita que o Brasil se endivide e se estampe numa curva da crise mais adiante, fazendo explodir uma bolha imaginária, produzindo endividados, desempregados e deprimidos. “O Brasil aprendeu com a crise dos outros”.
Mas há coisas no Brasil que irritam quem viveu fora, e a chegada de tantos imigrantes vai trazer mudanças. “Não vou em shows de música”, conta Fabiano, referindo-se a um dos esquemas cariocas. Por lei, estudantes ou idosos pagam metade de um bilhete em espetáculos. Mas muita pessoas têm uma identidade falsa, aproveitando um privilégio que não lhes pertence. Em vez de combater a fraude, as empresas de concertos duplicaram o preço dos bilhetes, que chegam a atingir os 100 euros.
Mariana Gorman levou um ano para adaptar-se, morar sozinha e conseguir ganhar a vida com o ofício de ilustradora e estampadora – fez recentemente a capa da revista do jornal Globo. “Há uma ilusão [de riqueza], não estou trabalhando como gostaria. Se não tivesse ajuda [da família] não sei como faria. Fiquei vivendo quase um ano em casa da minha mãe. O Rio funciona muito por contatos, é muito social, São Paulo é mais profissional.”
Mariana, que estudou e trabalhou em Barcelona e Madrid, deixou o Rio de Janeiro em 2007 quando a Europa ainda tinha mais trabalho e um euro valia quatro reais. Em pouco tempo tudo mudou: “O mercado têxtil foi muito afetado, comecei a ter menos trabalho de estamparia. Ou fazia um trabalho, mas não me pagavam. Começou a ficar difícil e percebi que estava fazendo mais coisas para o Brasil do que para lá. Das dez fábricas com que trabalhava só ficaram duas.”
Os imigrantes que regressaram de continentes em crise, parecem ser mais cautelosos que os restantes brasileiros. Desconfiam da “ilusão” e da “euforia” – palavras usadas por eles com frequência. Mas não conseguem esconder algum entusiasmo com as mudanças. Aquilo que em tempos pareceu impossível – fazer o que se gosta e ganhar assim a vida no seu país – é agora uma evidência para muitos. “As pessoas não vêm apenas para trabalhar, o Rio é sedutor”, diz Mariana. “Os meus primos, que estavam fora, regressaram todos.” Mas os modos cariocas, por vezes, ainda atormentam quem se habituou a outra convivência urbana. Mariana, que vive perto da Lagoa, onde uma gigante árvore de Natal se acendeu todas as noites em Dezembro, trazendo peregrinos natalícios e engarrafamentos de ataque cardíaco, indigna-se, sabendo que vale de pouco: “Demorava muito para chegar em casa e ficava sem luz duas horas. Aquela árvore sugava a luz de todo o bairro.”
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Published on June 18, 2012 11:34
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