Os Corvos de São Jorge - Ventos do Passado - Introdução
0.1
12 de Junho.
Lisboa.
A noite de céu limpo num tom cinza-azulado, clareado pelo meio luar intenso, fazia sobressair a Lua que iluminava a cidade já por si mergulhada em luzes urbanas. A noite era de festa, era a noite de Santos Populares, a noite de Santo António, o pináculo de um mês tradicionalmente dedicado à diversão na capital. Por toda a cidade, o Santo António, o santo padroeiro de Lisboa, que teria o seu dia assinalado no seguinte com um feriado municipal, era comemorado um pouco por todos os bairros típicos, lugares de ruas estreitas apinhadas de gente, portugueses e estrangeiros, residentes e turistas.
O cheiro a sardinha espalhava-se pelo ar, impregnando o ambiente citadino com o aroma de carvão misturado com o peixe ou a carne. Nem todos eram amigos da sardinha e alguns deslocados, alguns desrespeitadores das tradições, pediam uma febra de porco para colocar na fatia de pão, ao invés da bela, saborosa e tradicional sardinha.
A cerveja corria dos barris, servida à pressão em copos de plástico que na manhã seguinte iriam compor a passadeira de lixo que sempre ficava nos passeios para que alguém limpasse. Também a serviam em garrafas pequenas, também elas esquecidas aquando vazias, largadas com os copos de plástico inteiras ou em cacos. Alguém viria limpar... Também havia vinho e bebidas espirituosas. O pessoal queria festa e nunca ninguém ouvira falar em festa sem álcool.
A multidão espalhava-se nas ruelas, uns encostados às paredes sujas engalanadas com decoração festiva, outros a andar daqui para ali e dali para aqui. A massa humana deslocava-se como a lava que escorre de um vulcão, lentamente, pela encosta, pessoas com os braços no ar, protegendo o copo a pingar e a sardinha a escorrer no pão. Fitas coloridas, compostas de figuras de papel, cruzavam as vielas, ligavam prédios separados pelas vias de circulação, essencialmente pedonal. Lisboa era uma cidade cujos bairros típicos se fechavam cada vez mais ao trânsito automóvel.
As janelas tinham manjericos, aliás, tudo tinha manjericos. Todos com mensagens espetadas, todas a começar com o típico "Ó meu rico Santo António...". Havia todo o tipo de desejos que andavam sempre à volta do mesmo. Porém, apesar de centenas, senão milhares de mensagens, naquele ano nenhum papel trazia a mensagem que certamente, daí a alguns dias, milhares... ou talvez milhões de pessoas, desejariam que o santo cumprisse. E seria algo do género "Ó meu rico Santo António, padroeiro desta cidade de encantar. Livra-nos do demónio, que virá para nos matar".
A cacofonia de vozes embrulhava-se com a cacofonia de músicas. Falava-se português com diversas sonoridades, desde a endémica, à cantada do outro lado do Atlântico até ao português de tropeções do hemisfério sul. Pelo meio, muito espanhol e imenso inglês, algum francês e outros dialectos irreconhecíveis. Onde houvesse música, havia fado. Somente alguns locais fugiam à regra, dando uma oferta diferente a quem queria festa noutro ritmo.
Por norma, o ponto alto das comemorações das festas populares em Lisboa era o desfile das marchas, grupos de marchantes representando os seus bairros numa fraternal competição acérrima, bairrismo levado ao extremo saudável a que pode ir um desafio.
Como sempre, a Avenida da Liberdade engalanara-se para receber o evento. Às luzes urbanas diárias juntavam-se os holofotes que fustigavam o espaço com luz, de forma que nada ficasse escondido dos espectadores e da transmissão televisiva. O trânsito fora cortado naquele dia e quase toda a avenida era usada para o evento, se bem que apenas um sector a meio funcionava como uma espécie de sambódromo à portuguesa. Bancadas eram montadas a ladear o asfalto nos passeios largos entre a via central e as laterais. Pelo meio, a tribuna de honra com acesso apenas a convidados com requisitos especiais. Tudo aquilo trazia muito interesse, cada marcha apadrinhada por figuras conhecidas. A cantoria não se diferenciava muito entre cada marcha, a batida era igual em todas, mudavam as letras e talvez a música. Cada grupo recreativo treinava afincadamente para o desfile, preparativos que começavam muitos meses antes, pessoas que dedicavam quase todo o seu tempo livre, depois de um dia de trabalho, para treinar e produzir todo o conjunto de fatos e adereços. Só mesmo com muito amor se conseguia ser tão eficiente em algo que se fazia voluntariamente. As marchas poderiam ser sonoramente idênticas umas às outras, porém, visualmente eram um mar de criatividade, cultura, diversidade e cor.
Naquele ano, o desfile das marchas populares não era o único grande evento da cidade. Na Praça do Comércio iria acontecer um festival de música com várias bandas convidadas. E se na Avenida da Liberdade se juntavam muitas pessoas para além das centenas de marchantes, a Praça do Comércio estava apinhada de espectadores que não enjeitaram a hipótese de assistir a um concerto tão bom e gratuito. Nem todos os lisboetas eram fãs de santos e marchas. Por isso, não foi estranha a enchente na grande praça emblemática de Lisboa.
O grande palco fora elevado em frente ao Arco da Rua Augusta, tapando completamente a visão do rio a quem viesse por essa rua pedonal. As traseiras do palco estavam viradas para o arco e todo o sector entre eles estava vedado para melhor mobilidade de técnicos e artistas. A estrutura era enorme, elevando-se acima do monumento atrás de si. Um gigantesco bloco negro donde brotavam luzes fortes, coloridas, ora para o palco, ora para o público.
As bandas seriam todas portuguesas. Estamos a falar de um evento patrocinado pelo governo nacionalista lusitano, o qual já demonstrara querer fazer do período entre o Dia de Portugal e o Dia de Santo António um momento de exaltação nacional.
As vias rodoviárias a norte e a sul da praça foram cortadas para evitar ter carros a passar tão perto dos espectadores, até porque muitos gostariam de estar a assistir ao longe, saboreando ao mesmo tempo a noite na margem do rio Tejo. Os restaurantes que funcionavam em redor da praça mantiveram-se em funcionamento, mas sem esplanadas, reduzindo a capacidade de jantares, mas contrabalançando com pequenos balcões a vender bebidas e snacks aos espectadores do concerto.
A massa humana aqui também era impressionante, milhares de jovens e menos jovens tapavam o recinto da Praça do Comércio até ao rio. A estátua do rei D. José I era uma ilha que sobressaía no meio da multidão. Na frente desta, um sector reservado aos técnicos de luz e som que trabalhavam em sintonia com o palco.
A Lua incidia o seu brilho nas águas do rio, destacando as três fragatas da Marinha portuguesa que permaneciam ancoradas no Tejo há três dias. Os três navios mais poderosos da Marinha marcaram presença nas comemorações do 10 de Junho e ainda continuavam ancorados entre as duas margens para estranheza de muitos curiosos. Para lá destes, a margem sul escura ponteada por pequenas luzes alaranjadas com maior ênfase em Cacilhas. Perto da Ponte 25 de Abril, também ela iluminada, o Cristo Rei sobressaia no alto da encosta onde a primeira travessia rodoviária lisboeta do rio Tejo desembocava.
A noite era de festa...
A noite deveria ser de festa.
Ninguém soube dizer com clareza como tudo aconteceu. Calcula‑se que as melhores testemunhas foram os que não sobreviveram. No palco do concerto estaria a decorrer a participação da segunda ou da terceira banda. Até nisto a informação era contraditória. A meio de uma canção, aconteceu uma brutal explosão no meio do público. Mais tarde, a conclusão seria que a bomba estava dissimulada no equipamento técnico do sector que dava apoio ao palco, perto da estátua do rei. A brutalidade da explosão ceifou a vida dos técnicos que ali estavam e mais duas centenas de pessoas que se encontravam à volta. Muitas outras centenas ficaram feridas com gravidade, sofrendo no chão empedrado da praça. O pânico tomou conta do local e os espectadores começaram a fugir.
Teria sido um acidente?
Os acontecimentos seguintes tiraram as dúvidas.
Vindos não se sabe bem donde, vários elementos vestidos de negro e encapuçados, apareceram empunhando armas automáticas. Quem se deparou com eles, julgou serem elementos das forças policiais, brigadas de intervenção rápida para acorrer a algo que poderia ser um acto de terrorismo. Contudo, teria sido demasiado rápida a sua aparição. Estes elementos anónimos começaram a disparar para as pessoas, abatendo a sangue-frio todos os que conseguissem até haver quem lhes fizesse frente.
Os poucos polícias que faziam segurança ao evento foram abatidos com facilidade. Os terroristas avançaram pela praça pelo lado poente, espalharam-se em várias direcções disparando indiscriminadamente. Não deveriam ser mais que dez, mas sem oposição e com tantas munições, a matança fora sangrenta. Nem os feridos eram poupados. Quase todos os que não conseguiam, feridos da explosão ou das balas, eram executados impiedosamente com um tiro.
Um atentado terrorista.
Não havia outra forma de o descrever.
Quando finalmente apareceram mais polícias e agentes do SIALE para lhes fazer frente, o grupo iniciou a sua fuga, desaparecendo com a mesma rapidez com que haviam surgido do nada, brotando da confusão causada pela violenta explosão.
No concerto estavam milhares de pessoas. Mais tarde, o balanço viria a cifrar-se em perto de quatrocentos mortos e cerca de mil feridos com mais de metade em estado grave, o que desencadeou o caos nos hospitais da cidade.
A confusão interrompeu o desfile na Avenida da Liberdade. Primeiro o som assustador da explosão, depois a onda de choque e, por fim, as pessoas em fuga vindas de sul. As forças de segurança preocuparam-se em proteger as poucas individualidades que assistiam às Marchas.
As emissões televisivas foram interrompidas. Os principais canais de televisão suspenderam a programação para colocarem no ar blocos noticiosos de última hora. Equipas de reportagem foram enviadas para o local, uma vez que se perdera o contacto com os repórteres que acompanhavam o evento na Praça do Comércio. Inúmeros vídeos e fotos começaram a circular nas redes sociais, no Instagram, TikTok, Facebook... Filmagens de gente que gravava a actuação em palco no momento da explosão, filmagens dos terroristas ao longe a metralhar inocentes, fotos do fogo, dos feridos, gente a fugir, muitas tremidas e outras desfocadas.
Cerca de meia hora depois, o atentado foi reivindicado pelo grupo terrorista que já tinha feito outros atentados em Lisboa, naquele ano, entre eles o assassinato de um ministro. Logo de seguida, o ministro da Administração Interna falou aos jornalistas para condenar o acto e prometer perseguição a todos os elementos do grupo. Seria feita justiça e a pena de morte voltaria a Portugal, jurou ele. O gabinete do primeiro‑ministro informou que o chefe do governo iria fazer uma declaração ao país. Curiosamente, ninguém sabia do Presidente da República...
Portugal vivia tempos muito complicados, tempos que se vinham a agravar desde o início do século. A sociedade portuguesa fracturava-se, os ódios eram semeados e potenciados por quem lucrava com eles. Para muitos, aquele trágico acontecimento seria previsível, apesar de ninguém sonhar com um resultado tão brutal para além dos seus perpetradores.
Quem estava por detrás deste grupo terrorista?
Para se perceber melhor como foi possível chegar aqui, temos de recuar aos finais do século XX e inícios do século XXI...
Livro completo na Biblioteca no meu website www.nunostavares.pt
12 de Junho.
Lisboa.
A noite de céu limpo num tom cinza-azulado, clareado pelo meio luar intenso, fazia sobressair a Lua que iluminava a cidade já por si mergulhada em luzes urbanas. A noite era de festa, era a noite de Santos Populares, a noite de Santo António, o pináculo de um mês tradicionalmente dedicado à diversão na capital. Por toda a cidade, o Santo António, o santo padroeiro de Lisboa, que teria o seu dia assinalado no seguinte com um feriado municipal, era comemorado um pouco por todos os bairros típicos, lugares de ruas estreitas apinhadas de gente, portugueses e estrangeiros, residentes e turistas.
O cheiro a sardinha espalhava-se pelo ar, impregnando o ambiente citadino com o aroma de carvão misturado com o peixe ou a carne. Nem todos eram amigos da sardinha e alguns deslocados, alguns desrespeitadores das tradições, pediam uma febra de porco para colocar na fatia de pão, ao invés da bela, saborosa e tradicional sardinha.
A cerveja corria dos barris, servida à pressão em copos de plástico que na manhã seguinte iriam compor a passadeira de lixo que sempre ficava nos passeios para que alguém limpasse. Também a serviam em garrafas pequenas, também elas esquecidas aquando vazias, largadas com os copos de plástico inteiras ou em cacos. Alguém viria limpar... Também havia vinho e bebidas espirituosas. O pessoal queria festa e nunca ninguém ouvira falar em festa sem álcool.
A multidão espalhava-se nas ruelas, uns encostados às paredes sujas engalanadas com decoração festiva, outros a andar daqui para ali e dali para aqui. A massa humana deslocava-se como a lava que escorre de um vulcão, lentamente, pela encosta, pessoas com os braços no ar, protegendo o copo a pingar e a sardinha a escorrer no pão. Fitas coloridas, compostas de figuras de papel, cruzavam as vielas, ligavam prédios separados pelas vias de circulação, essencialmente pedonal. Lisboa era uma cidade cujos bairros típicos se fechavam cada vez mais ao trânsito automóvel.
As janelas tinham manjericos, aliás, tudo tinha manjericos. Todos com mensagens espetadas, todas a começar com o típico "Ó meu rico Santo António...". Havia todo o tipo de desejos que andavam sempre à volta do mesmo. Porém, apesar de centenas, senão milhares de mensagens, naquele ano nenhum papel trazia a mensagem que certamente, daí a alguns dias, milhares... ou talvez milhões de pessoas, desejariam que o santo cumprisse. E seria algo do género "Ó meu rico Santo António, padroeiro desta cidade de encantar. Livra-nos do demónio, que virá para nos matar".
A cacofonia de vozes embrulhava-se com a cacofonia de músicas. Falava-se português com diversas sonoridades, desde a endémica, à cantada do outro lado do Atlântico até ao português de tropeções do hemisfério sul. Pelo meio, muito espanhol e imenso inglês, algum francês e outros dialectos irreconhecíveis. Onde houvesse música, havia fado. Somente alguns locais fugiam à regra, dando uma oferta diferente a quem queria festa noutro ritmo.
Por norma, o ponto alto das comemorações das festas populares em Lisboa era o desfile das marchas, grupos de marchantes representando os seus bairros numa fraternal competição acérrima, bairrismo levado ao extremo saudável a que pode ir um desafio.
Como sempre, a Avenida da Liberdade engalanara-se para receber o evento. Às luzes urbanas diárias juntavam-se os holofotes que fustigavam o espaço com luz, de forma que nada ficasse escondido dos espectadores e da transmissão televisiva. O trânsito fora cortado naquele dia e quase toda a avenida era usada para o evento, se bem que apenas um sector a meio funcionava como uma espécie de sambódromo à portuguesa. Bancadas eram montadas a ladear o asfalto nos passeios largos entre a via central e as laterais. Pelo meio, a tribuna de honra com acesso apenas a convidados com requisitos especiais. Tudo aquilo trazia muito interesse, cada marcha apadrinhada por figuras conhecidas. A cantoria não se diferenciava muito entre cada marcha, a batida era igual em todas, mudavam as letras e talvez a música. Cada grupo recreativo treinava afincadamente para o desfile, preparativos que começavam muitos meses antes, pessoas que dedicavam quase todo o seu tempo livre, depois de um dia de trabalho, para treinar e produzir todo o conjunto de fatos e adereços. Só mesmo com muito amor se conseguia ser tão eficiente em algo que se fazia voluntariamente. As marchas poderiam ser sonoramente idênticas umas às outras, porém, visualmente eram um mar de criatividade, cultura, diversidade e cor.
Naquele ano, o desfile das marchas populares não era o único grande evento da cidade. Na Praça do Comércio iria acontecer um festival de música com várias bandas convidadas. E se na Avenida da Liberdade se juntavam muitas pessoas para além das centenas de marchantes, a Praça do Comércio estava apinhada de espectadores que não enjeitaram a hipótese de assistir a um concerto tão bom e gratuito. Nem todos os lisboetas eram fãs de santos e marchas. Por isso, não foi estranha a enchente na grande praça emblemática de Lisboa.
O grande palco fora elevado em frente ao Arco da Rua Augusta, tapando completamente a visão do rio a quem viesse por essa rua pedonal. As traseiras do palco estavam viradas para o arco e todo o sector entre eles estava vedado para melhor mobilidade de técnicos e artistas. A estrutura era enorme, elevando-se acima do monumento atrás de si. Um gigantesco bloco negro donde brotavam luzes fortes, coloridas, ora para o palco, ora para o público.
As bandas seriam todas portuguesas. Estamos a falar de um evento patrocinado pelo governo nacionalista lusitano, o qual já demonstrara querer fazer do período entre o Dia de Portugal e o Dia de Santo António um momento de exaltação nacional.
As vias rodoviárias a norte e a sul da praça foram cortadas para evitar ter carros a passar tão perto dos espectadores, até porque muitos gostariam de estar a assistir ao longe, saboreando ao mesmo tempo a noite na margem do rio Tejo. Os restaurantes que funcionavam em redor da praça mantiveram-se em funcionamento, mas sem esplanadas, reduzindo a capacidade de jantares, mas contrabalançando com pequenos balcões a vender bebidas e snacks aos espectadores do concerto.
A massa humana aqui também era impressionante, milhares de jovens e menos jovens tapavam o recinto da Praça do Comércio até ao rio. A estátua do rei D. José I era uma ilha que sobressaía no meio da multidão. Na frente desta, um sector reservado aos técnicos de luz e som que trabalhavam em sintonia com o palco.
A Lua incidia o seu brilho nas águas do rio, destacando as três fragatas da Marinha portuguesa que permaneciam ancoradas no Tejo há três dias. Os três navios mais poderosos da Marinha marcaram presença nas comemorações do 10 de Junho e ainda continuavam ancorados entre as duas margens para estranheza de muitos curiosos. Para lá destes, a margem sul escura ponteada por pequenas luzes alaranjadas com maior ênfase em Cacilhas. Perto da Ponte 25 de Abril, também ela iluminada, o Cristo Rei sobressaia no alto da encosta onde a primeira travessia rodoviária lisboeta do rio Tejo desembocava.
A noite era de festa...
A noite deveria ser de festa.
Ninguém soube dizer com clareza como tudo aconteceu. Calcula‑se que as melhores testemunhas foram os que não sobreviveram. No palco do concerto estaria a decorrer a participação da segunda ou da terceira banda. Até nisto a informação era contraditória. A meio de uma canção, aconteceu uma brutal explosão no meio do público. Mais tarde, a conclusão seria que a bomba estava dissimulada no equipamento técnico do sector que dava apoio ao palco, perto da estátua do rei. A brutalidade da explosão ceifou a vida dos técnicos que ali estavam e mais duas centenas de pessoas que se encontravam à volta. Muitas outras centenas ficaram feridas com gravidade, sofrendo no chão empedrado da praça. O pânico tomou conta do local e os espectadores começaram a fugir.
Teria sido um acidente?
Os acontecimentos seguintes tiraram as dúvidas.
Vindos não se sabe bem donde, vários elementos vestidos de negro e encapuçados, apareceram empunhando armas automáticas. Quem se deparou com eles, julgou serem elementos das forças policiais, brigadas de intervenção rápida para acorrer a algo que poderia ser um acto de terrorismo. Contudo, teria sido demasiado rápida a sua aparição. Estes elementos anónimos começaram a disparar para as pessoas, abatendo a sangue-frio todos os que conseguissem até haver quem lhes fizesse frente.
Os poucos polícias que faziam segurança ao evento foram abatidos com facilidade. Os terroristas avançaram pela praça pelo lado poente, espalharam-se em várias direcções disparando indiscriminadamente. Não deveriam ser mais que dez, mas sem oposição e com tantas munições, a matança fora sangrenta. Nem os feridos eram poupados. Quase todos os que não conseguiam, feridos da explosão ou das balas, eram executados impiedosamente com um tiro.
Um atentado terrorista.
Não havia outra forma de o descrever.
Quando finalmente apareceram mais polícias e agentes do SIALE para lhes fazer frente, o grupo iniciou a sua fuga, desaparecendo com a mesma rapidez com que haviam surgido do nada, brotando da confusão causada pela violenta explosão.
No concerto estavam milhares de pessoas. Mais tarde, o balanço viria a cifrar-se em perto de quatrocentos mortos e cerca de mil feridos com mais de metade em estado grave, o que desencadeou o caos nos hospitais da cidade.
A confusão interrompeu o desfile na Avenida da Liberdade. Primeiro o som assustador da explosão, depois a onda de choque e, por fim, as pessoas em fuga vindas de sul. As forças de segurança preocuparam-se em proteger as poucas individualidades que assistiam às Marchas.
As emissões televisivas foram interrompidas. Os principais canais de televisão suspenderam a programação para colocarem no ar blocos noticiosos de última hora. Equipas de reportagem foram enviadas para o local, uma vez que se perdera o contacto com os repórteres que acompanhavam o evento na Praça do Comércio. Inúmeros vídeos e fotos começaram a circular nas redes sociais, no Instagram, TikTok, Facebook... Filmagens de gente que gravava a actuação em palco no momento da explosão, filmagens dos terroristas ao longe a metralhar inocentes, fotos do fogo, dos feridos, gente a fugir, muitas tremidas e outras desfocadas.
Cerca de meia hora depois, o atentado foi reivindicado pelo grupo terrorista que já tinha feito outros atentados em Lisboa, naquele ano, entre eles o assassinato de um ministro. Logo de seguida, o ministro da Administração Interna falou aos jornalistas para condenar o acto e prometer perseguição a todos os elementos do grupo. Seria feita justiça e a pena de morte voltaria a Portugal, jurou ele. O gabinete do primeiro‑ministro informou que o chefe do governo iria fazer uma declaração ao país. Curiosamente, ninguém sabia do Presidente da República...
Portugal vivia tempos muito complicados, tempos que se vinham a agravar desde o início do século. A sociedade portuguesa fracturava-se, os ódios eram semeados e potenciados por quem lucrava com eles. Para muitos, aquele trágico acontecimento seria previsível, apesar de ninguém sonhar com um resultado tão brutal para além dos seus perpetradores.
Quem estava por detrás deste grupo terrorista?
Para se perceber melhor como foi possível chegar aqui, temos de recuar aos finais do século XX e inícios do século XXI...
Livro completo na Biblioteca no meu website www.nunostavares.pt

Published on October 25, 2024 02:15
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