Como começar uma história (Lista do Zé#33)
Eu acho que estava dentro de um ônibus quando uma história começou a nascer. Eu olhava para as margens semiáridas da estrada quando comecei a sonhar com uma história de… samurais. Era a história de um assassino aposentado. Agora ele era mendigo nas ruas de uma grande metrópole e, depois de receber a visita de um repórter, se viu obrigado a voltar à ativa contra a organização que o ensinou sua arte de matar. A história veio assim, quase toda, incluindo algumas boas ideias para um final (algo que acontece raramente no meu processo). Estava com outros mil projetos na época, então anotei a ideia em vários pedacinhos de papel e pendurei num flanelógrafo no meu escritório. Quanto tempo essa ideia passou lá até que eu a retirasse dali para trabalhar nela? Vou chutar aqui que uns três anos.
Essa introdução toda é apenas para conversarmos sobre um assunto que interliga várias coisas que me perguntam muito: a) de onde vêm as ideias para as histórias ou b) como ter ideias para histórias ou c) por onde começar uma história. A resposta para essas perguntas é muito imprecisa, mas tem alguns caminhos mais comuns.
A maior parte das minhas ideias surge quando estou lendo um livro ou quadrinho ou assistindo um filme ou série. Quase sempre é um “e se...?”, uma variação daquilo que estou vendo. Eu nunca consigo desligar meu cérebro de escritor, nem mesmo quando estou lendo. Isso significa que eu fico tipo público de show de mágica, tentando descobrir o segredo do truque daquilo que estou lendo/vendo. O truque, no caso, descobrir a) como estão conseguindo me manter interessado naquela obra e b) como aquilo vai acabar. O item “b” é sempre muito interessante para gerar novas ideias… Às vezes eu tento adivinhar o final da história e falho miseravelmente. Aí eu olho para aquele final que eu pensei e, se ele for melhor do que o que eu acabei de ver, provavelmente eu vou “recontar” aquela história.
“Mas, Zé, isso não é plágio?”. Pode ser, sim. Então, CUIDADO. Eu poderia aqui indicar (e indico fortemente) que você veja o documentário Everything’s a remix, que explica que, no fim das contas, toda criação deriva de uma mistura de várias, mas antes prefiro dizer que respeito muito as criações de outros colegas. Quando a vontade de recontar a história vem, ela tem de vir junto com soluções que diferenciem a minha história daquela que deu origem a ela. Uma coisa que sempre me deixa muito tranquilo é que uma ideia minha passa por MUITOS tratamentos (uma forma de chamar as revisões e reconstruções da história, enquanto ela ainda está sendo criada). São tantas idas e vindas, que é muito provável que qualquer coisa que assemelhe a minha história a outra que a inspirou vire um sopro no produto final.
Ideias podem vir também da simples observação do mundo. Já dizia o poeta Jessier Quirino que escritores são “prestadores de atenção”. Uma situação que você observou ou, MELHOR AINDA, que aconteceu com você, pode ser o pontapé inicial para uma história. As melhores histórias que você vai contar são aquelas que advém de coisas que mexem com você. É muito provável que falar sobre algo que incomoda você faça muitas outras pessoas se identificarem com a sua história. Lembro de ouvir um podcast com o escritor e quadrinista Lourenço Mutarelli falando sobre seu método criativo, que constava em sentar numa praça, observar as pessoas e tentar imaginar o que elas estavam passando naquele momento. Em Steampunk Ladies: Choque do futuro, há uma sequência onde dois garotos fazem pouco de uma garota, quando ela os convida para brincar de boneca. Essa cena é inspirada numa situação vivida por mim, quando flagrei um garoto fazendo pouco da minha filha quando ela o convidou para brincar. Quem já leu a HQ sabe que a garotinha dá a volta por cima. É assim que escritores se vingam: escrevendo histórias.
Corta agora para o final de 2020: surge um edital da Lei Aldir Blanc na minha cidade (já falei sobre editais aqui). Foram várias seleções de projetos pelo Brasil nessa lei e a principal característica de todos era um prazo apertadíssimo. Mas que história eu inscreveria naquele edital, tendo ela que ser inédita e precisando estar pronta em menos de dois meses? Olhei para o flanelógrafo e vi os papeizinhos recortados da ideia que tive na estrada. Parecia uma ideia boa, mas ainda me incomodava, porque parecia demais com outras histórias. Para não cair no risco de copiar algo involuntariamente, eu precisava adicionar alguns elementos ali em busca de alguma originalidade. Foi aí que meu senso de prestador de atenção entrou em ação.
Na minha adolescência, a chegada de um garoto novo na escola causou estardalhaço por conta de um boato que correu pelos corredores: ele seria sobrinho de um famoso pistoleiro do estado. Se aquilo era verdade ou não eu nunca vou saber, o fato é que essa história voltou na minha cabeça quando peguei aqueles papeizinhos, me fazendo transformar toda a ideia, começando por uma mudança de cenário para o Ceará. Claro que essa mudança também vem do meu atual movimento de escrever mais sobre coisas que estão ao meu redor. E assim nasceu Mata-mata: uma história sobre pessoas que vivem para matar outras, mas também uma história sobre família e legado.
Tudo isso começou com samurais, dá para acreditar? Engraçado que, relendo a história, comecei a entender melhor o porquê da arma da última morte, algo que rolou inconscientemente, eu juro...
E você, de onde vem as inspirações para suas histórias?
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