Fé no inferno

Descubro que o novo romance do amigo Santiago Nazarian, Fé no Inferno, sai em impressão sob demanda. É decisão circunstancial e temporária da Companhia das Letras, parece. Também é o fim de uma era: a regida pelo acaso, na qual entrávamos na livraria e comprávamos um livro à revelia.


Ou seja: para comprar o livro, agora o leitor deve estar determinado: encomendá-lo ao livreiro ou à editora. E comigo nunca (na grande maioria das vezes) funcionou assim. Entro na livraria para comprar o livro X e saio com o Y (ou com X e Y e talvez o Z). O acaso é determinante.


É válido dizer que não se é mais possível entrar numa livraria e zanzar pelas prateleiras por tempo indeterminado (por ex, minha loja predileta de LPs permite atualmente a entrada de um só cliente por vez, por 10 parcos minutos, insuficientes para escarafunchar prateleiras).


Isso, espero, é circunstancial: as livrarias voltarão a reunir leitores, assim que possível. O que me parece outra coisa, talvez mais assustadora, é que editoras descubram a validade de se imprimir livros sob demanda, restringindo ainda mais o alcance das obras de ficção.


Ou assumindo que o alcance da ficção literária, como quer o crítico italiano Massimo Rizzante, é o mesmo alcançado pela poesia, cujo público sempre foi minoritário. A impressão por demanda, por extensão, seria a pazada de terra final no papel cultural representado pelo livreiro.


Cujo precedente, talvez, tenha sido a distribuição de livros por consignação, que igualmente afetou o modo como o leitor moderno opera em sua busca por conhecimento, determinado pela oferta, não somente pela demanda.A consignação restringiu o acervo das livrarias aos lançamentos.


Livrarias podem montar de modo mais acessível seu acervo, que porém se torna cinzento, composto apenas por lançamentos, sem títulos fora de catálogo, sem achados, sem novidades empoeiradas do passado. Sem a presença do acaso, com livreiros tolhidos de exercer sua expertise,livrarias se tornam todas parecidas, mesmo que haja sagacidade na seleção dos títulos consignados. Como a totalidade das livrarias não tem capital para comprar títulos para compor seu acervo, tornam-se dependentes da distribuição consignada, impossibilitadas de criar identidade.


É por isso que sou cliente de sebos, que conseguem criar essa identidade. No Brasil, admiramos as livrarias argentinas por sua quantidade e qualidade. No entanto aquelas livrarias da Corrientes são, em sua maioria, sebos com lançamentos disponíveis aqui e ali, por isso são boas.


Nesse sentido, voltando ao início, e tentando encontrar uma visão positiva da impressão por demanda (ando meio Poliana), talvez essas novas livrarias independentes que têm surgido (ao menos em SP), enfim compreendam que, para terem personalidade, terão de montar acervos que não dependam da triste toada dos lançamentos e das ofertas das editoras, compondo prateleiras dedicadamente e com variedade, com livros antigos e novos, importados e nacionais, com revistas e periódicos (do passado e do futuro). Só assim para as livrarias sobreviverem.


 


 


 


 

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Published on July 17, 2020 08:39
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message 1: by Samia (new)

Samia Gostei demais do artigo. Nesta pandemia, acabo vendo lives de autores, de livrarias, de editoras, festivais de literatura e tem me chamado a atenção os autores independentes.
Estes meio que já publicam seus livros por demanda, no caso, deles próprios. Os ¨periféricos¨parecem ter encontrado a sua maneira de divulgar e vender seus trabalhos através dos saraus, palestras em escolas, slams.
Fico pensando que há um tipo de leitor ignorado pelas editoras, o leitor de palavras mais que de edições caprichadas. Muito em razão da sua condição financeira, mas que mesmo apesar dela quer consumir literatura. Livros de bolso, edições mais simples, podem ter uma demanda importante.
Embora, aí, tenhamos que pensar em como seria o acesso a estes livros, já que as livrarias tendem a estar nas regiões centrais de maior poder aquisitivo.
Eita, que fui pensando, pensando e escrevi uma mensagem monstro. Madrugada, sabe como é.


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