in YGGDRASIL, PROFECIA DO SANGUE - cap 20
VINTE- Lochan! Porque retiraste as chaves?Maria estava sentada no cadeirão da cave há horas. Tinha lido tudo o que conseguira sobre a Wiccan, religião neopagã, em que se venerava a Deusa, recorrendo ao que a natureza oferecia, ervas, raízes, energia, incenso, velas, orações, magia.- Ouviste-me? – estavam há tanto tempo em silêncio que não tinha a certeza que a tivesse escutado. Levantou os olhos do livro que lia.Lochan estava cabisbaixo.- Sei que te custa, mas faz um esforço e conta-me do que te lembras. Algo que te pareça insignificante pode servir como pista.- Também começas a desesperar?- Ainda não, mas estou quase. – Maria sentia-se apreensiva.Lochan recostou-se no sofá fechando os olhos com as mãos atrás da cabeça.- Sendo o único que podia aceder às chaves, devia ter ficado quieto, mas infelizmente não foi o que fiz.- Não te recordas de nada?Lochan sentia-se infeliz.- Sempre fui irresponsável quando se tratava de mulheres. Mudava mais depressa de companheira do que de camisa, nunca me deitava com a mesma dois dias seguidos. Até que a conheci... – não conseguia acabar a frase. Maria sentia a sua agitação, amara perdidamente e fora traído.- Sabia que era uma traell, que nunca seria aceite pelo Clã, mas amava-a como nunca amei. Pensei que podia contar com o apoio de Rhenan, mas ele foi quem mais se opôs à minha escolha. Inicialmente não entendi porquê, mais tarde percebi que não confiava nela.- Desculpa! - pousou-lhe a mão na perna – Não te pediria para falares disso se não achasse importante.- Preciso de desabafar com alguém, nunca o consegui fazer e fico feliz que seja contigo. - apertou-lhe a mão que continuava pousada na sua perna – Deixei tudo e fui viver com ela na sua tenda. Ao início era perfeito, mas rapidamente me apercebi que andava irritada, que o amor que lhe tinha não chegava. Mesmo sabendo disso não desisti dela, percebi que para a ter tinha de a colocar ao meu nível. - suspirou triste inclinando-se para a frente sem nunca lhe largar a mão – Ela não queria continuar a ser uma serva, mas a senhora da casa. Falei várias vezes com a minha mãe e com os meus irmãos para me deixarem trazê-la para aqui e desposá-la. Levantou-se, a ansiedade não lhe permitia ficar parado.- Continuei a alimentar-lhe a esperança de que um dia viveria nesta casa e durante um tempo voltou a ser a mulher por quem me apaixonara. As semanas passavam, até que se apercebeu que a minha família nunca a aceitaria. – sentia uma excruciante dor. Maria tinha o coração apertado ao ver o seu sofrimento.- Por essa altura apareceram ciganos no acampamento e Hel começou a visitá-los com regularidade. Como tinha dificuldade em dormir preparava-me infusões que aprendia com eles. Uma noite tive a sensação de me ter dado algo para me fazer falar. Ainda hoje continua a ser uma névoa na minha memória, não me lembro de nada a partir do momento em que levei a caneca aos lábios. No dia seguinte acordei sozinho, procurei-a, não estava no acampamento e ninguém a vira. Relembrava os piores dias da sua vida.- Se quiseres parar…- Faz-me bem poder finalmente contar a minha parte da história. – respirou fundo - Mais tarde, soube que tinha vindo aqui e que obedecendo a ordens dos meus irmãos os homens do Clã a tinham escorraçado para fora dos limites das nossas terras. Regressou ao acampamento ao cair da noite, trazia o ódio estampado no rosto. Quando me encarou a sua frieza devia ter-me servido de aviso, porém o meu juízo continuava toldado pelo coração. Nessa noite, preparou uma tina onde nos banhámos e amámos como da primeira vez. – acabou a frase com a voz praticamente inaudível.Maria sentia o seu sofrimento. Com o coração dilacerado voltou a sentar-se segurando-lhe na mão, necessitava do seu calor para prosseguir. - Bebíamos vinho quente quando senti dores no peito. Pedi-lhe ajuda, mas limitou-se a olhar para mim a rir-se, mostrando-me um saquinho com um pó verde. Soube de imediato que tinha sido envenenado, não perdi tempo, vesti-me e cavalguei para aqui enquanto ainda tinha forças. Devo ter desmaiado, não me lembro de nada até cair no chão à frente da porta e ver Rhenan correr na minha direcção. Caí nos seus braços e … deixei de existir.Maria chorava, apertando-lhe a mão. Sentia a angústia dele como sua, não percebia como aquela mulher pudera renegar um amor tão puro. Odiava-a! Abraçou-o, deixando-se ficar nos seus braços até conseguir voltar a falar. - Lochan, a tua falta de memória no percurso entre o acampamento e Yggdrasil, só pode ter sido nesse momento que retiraste as chaves e as escondeste. Vinhas contar-lhes. - Não me lembro onde as escondi, mas sei quem nos poderá ajudar. E desta vez não vos vou falhar.- Tu não falhaste, foste traído. Prometo vingar-te, desfazer o mal que te foi feito e vou estar sempre ao teu lado.- Adoro-te! – os olhos brilhavam de esperança. Tomou-a nos braços, esperançoso. A porta abriu-se. Rhenan entrou seguido de Maeve, que parou atónita com o que presenciava. Sem explicação Maria voava.- O que está a acontecer? – a voz de Maeve saíra num sussurro - Que tipo de magia andas a fazer?Maria e Lochan ainda não se tinham apercebido da companhia.- Mano, vê lá se colocas a minha mulher no chão antes que te obrigue. - o som tentava parecer ameaçador, mas a voz de Rhenan ria perante a alegria de Maria e a estupefacção da prima.Maria olhou para Rhenan corando. - Mano? – Maeve nem se apercebia que gritava - Enlouqueceram?Rhenan abraçou a prima com medo que caísse quando Fionn seguido de Eoghan assomavam à porta da cave.Maeve desceu os degraus a medo até chegar ao sofá deixando-se cair, olhando desconfiada para Maria.- Enlouqueceste? - Fionn mastigava o resto do bolo que colocara à pressa na boca ao ouvir a prima gritar. Maria sabia que a decisão de contar o que acontecera dependia unicamente dela.- Queres continuar a dançar? – piscou o olho a Lochan estendendo-lhe os braços. Este sorriu-lhe feliz fazendo o que lhe pedia recomeçando a rodopiar com ela nos seus braços, através da sala.Fionn engasgou-se cuspindo migalhas. Rhenan esticou-lhe uma água para o ajudar a digerir melhor o que vinha a seguir.- Mas o que se passa? – Fionn conseguia finalmente perguntar, com a voz arranhada.- Lochan! - Eoghan sorria, estava fascinado com o que via.Maeve e Fionn olhavam estupefactos para Eoghan.- É o nosso irmão! – Rhenan sorria divertido - E agora vê lá se tiras as mãos de cima da minha mulher, invisível ou não já te avisei.Lochan pousou-a, encorajando-a a contar, sentando-se no braço do cadeirão ao seu lado.Maeve chorava. Maria podia jurar que Fionn também, mas devia ser consequência de se ter engasgado.- É verdade. Está sentado ao meu lado. – olhou para ele quando Lochan lhe colocou uma mão sobre o ombro.- Como é isso possível? – Maeve acalmara quando Eoghan se sentara abraçando-a.- Tudo aconteceu no dia que toquei na imagem de Yggdrasile fui transportada para Tara. Quando regressei conseguia vê-lo, ouvi-lo, tocar-lhe. Tem dormido no quarto dele e tem-me feito companhia aqui em baixo.- Quem sabia? – Fionn aproximou-se sentando-se ao lado da prima.- Só eu, o Rhenan e mais recente o Eoghan. - Porque não nos disseram? - Fionn levantou-se do cadeirão caminhando às voltas pela sala.- Para vos proteger.- Do quê? - Maeve continuava incrédula.- Primeiro o Lochan, depois a tua tia e a tua mãe.- Minha Deusa! – Maeve limpava as lágrimas que teimavam em sulcar-lhe o rosto.- Não lhes podes dizer. - Prometo que não farei nada que te coloque em perigo. – Maeve ainda não conseguia acreditar. - Já que estamos numa onda de confissões, aproveito para vos informar que tenho treinado todos os dias luta corpo a corpo e até já sei manejar algumas espadas e facas.- Eu achava que estavas a ficar tonificada, mas pensei que fosse da luta debaixo dos lençóis. – Fionn voltava a ser o mesmo.- Que engraçado. Se fosse a ti tinha cuidado, sou mulher para te dar uma coça.- Combinado!- Aposto em ti Maria. - Maeve esfregava as mãos – Dá-lhe uma tareia, que o morcego merece.Maria piscou-lhe o olho divertida.- Mas há mais! Acho que vão gostar de saber o motivo que o levou a retirar as chaves. Lochan suplicava-lhe com o olhar que não o fizesse. Não estava preparado para ouvir a recriminação dos irmãos. Escutaram atentamente o que Maria lhes dizia.- Não se perdoa por tudo o que vos fez sofrer. Acho que chegou a altura de ouvir o que cada um tem para lhe dizer. – Maria apertou-lhe a mão não lha largando.Olhavam para a mão dela, conseguiam sentir a presença de Lochan apesar de não o verem.- Estou pronto! - Fionn sentara-se no chão perto da lareira. Rhenan olhava para Maria incrédulo, finalmente conseguiam colocar lógica nas estranhas atitudes do irmão. Falavam ao mesmo tempo para o local onde Maria indicara estar Lochan, com paciência transmitia-lhes as suas respostas. Maria bocejou, desculpando-se. O dia tinha sido muito intenso e longo, mas aparentemente ninguém o queria dar por terminado. Lochan tomou a decisão por ela pegando-lhe ao colo, levando-a com ele perante o olhar atónito de todos que se levantaram seguindo-os. - Avisa o meu querido irmão que vou levar-te para a cama.- O teu irmão vai levar-me para a cama.- Andas a esticar-te mano.Lochan e Maria riam-se divertidos.- Agradeço-te porque estou estafada. – encostou a cabeça ao seu ombro.Eoghan foi o último a sair desligando a luz e fechando a porta. Um aro de luz azul protector ia-se alastrando pela propriedade afastando as Sombras para a escuridão, onde pertenciam.- Disseste que sabias quem nos pode ajudar a encontrar as chaves, a quem te referias?- Não a conheço, mas sei que é uma feiticeira e se chama Rhiannon.- Eu conheço-a, - abriu muito os olhos voltando a cara para ele - mas vamos ter um enorme problema. Podemos conversar sobre ela amanhã?- Quando quiseres. Já é um bom presságio saber que a conheces. Não sei como, mas é bom sabê-lo.Rhenan foi o único que os ouviu. Despediram-se dele. - Obrigado! Nunca me cansarei de te agradecer, - beijou-a na testa pousando-a na cama - por tudo o que tens feito por mim. Afastou-se. Com a ajuda de Maria voltara a estar com a família. - O Lochan disse-me que agora estava nas tuas mãos. Podes ajudar-me a despir? – sugeria com a voz arrastada. - Será um prazer. Mas, o meu irmão andar sempre contigo ao colo está a tornar-se um hábito e não me agrada.- Com ciúmes?- Alguns.- Anda cá. - puxou-o para si, o cansaço desaparecera, o desejo que sentia por ele não esmorecia. - Mo ghrá!
No escuro algo se agitava incomodado. A cada dia que passava, eram afastados por uma força que os arrastava cada vez para mais longe da casa. Algo muito forte crescia dentro de Yggdrasil e deveria ser destruído porque começava a enfraquecê-los. Goll tentava avançar uma vez mais, mas deparou-se com aquela estranha barreira que o lançou para trás, queimando-o.Uivou de raiva. Queria que o ouvissem. Odiava-os desde o dia em que se apresentara perante Deirdre e ela o negara, casando-se pouco tempo depois com Fionn MacBaische. Odiava-os ainda mais, porque depois de lhe matar o marido e o cunhado, os bastardos que se escondiam naquela casa, tinham dizimado o seu Clã. Nesse dia, jurara vingança e em troca da sua já negra alma fora-lhe dada mais uma oportunidade pela Bruxa que o acompanhava. Sabia que os podia destruir só precisava de se aproximar o suficiente, mas tornava-se mais difícil enquanto aquela estranha protecção continuasse a aumentar.Utilizaria Hel, sabia o ódio que lhes tinha, quase tão grande como o seu. Também ela esperava por uma oportunidade.Lançou novo uivo de satisfação, os dentes brilhavam no escuro. A imagem deles, deitados no próprio sangue, estimulava-o.Tinha tempo, aliás tempo era tudo o que lhe restava.
Published on April 05, 2020 02:00
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