in YGGDRASIL, PROFECIA DO SANGUE - cap 10


DEZ

Antes de deixar Yggdrasil, Freya telefonara garantindo-lhe que podia viajar descansada, tanto ela como a sua família estavam protegidas. Não sabia o que pensar, mas acreditava nela e era quanto bastava. Para sua surpresa, Rhenan quisera falar-lhe. A voz rouca deixara-a ansiosa, desejava que a abraçasse, a beijasse, mas tinha de se contentar com a sua promessa de que em breve estariam juntos. Estacionaram no aeroporto de Dublin perto da área das partidas. Fionn abriu a bagageira retirando a mala de Maria transportando-lha. Enquanto caminhavam lado a lado, no mesmo silêncio que os acompanhava desde Glendalough, Maria pensava que não passara muito tempo desde que os conhecera precisamente naquele local. Odiava despedidas. Fionn esticou-lhe a mala, sem falar beijou-os caminhando na direcção do balcão de check-in sem se voltar. Tinha receio de que se o fizesse não conseguisse partir.Os MacCumhaill observavam-na enquanto se afastava. Já se tinham habituado a tê-la por perto e a sua partida ainda que por pouco tempo deixava-lhes um vazio.  Rita e Pedro tinham chegado mais cedo, já a esperavam na sala de embarque, Maria sentou-se perto deles. Sabia que Maeve, Eoghan e Fionn ainda ali estavam, só abandonariam o aeroporto quando o avião descolasse. Não tiveram de esperar muito, Pedro fez-lhe sinal apontando para o placard, iam começar o embarque. O avião saía à hora prevista. Sentou-se num lugar à janela. Pedro e Rita duas filas à sua frente. Tirou o livro que pretendia ler durante a viagem colocando a mala debaixo do banco à sua frente.Não conseguia concentrar-se na leitura, fechou os olhos dormitando, sem se aperceber de o tempo passar até ouvir a voz da chefe de cabine através do altifalante. “Senhoras e senhores passageiros, começámos a descida final, agradecemos que se sentem, recolham os tabuleiros à vossa frente, coloquem as cadeiras na posição vertical e apertem os cintos de segurança”.Maria fez o que diziam, guardando o livro. As comissárias de bordo avançavam ao longo das filas certificando-se que as indicações transmitidas estavam a ser cumpridas.O avião tocou no chão, deslizando suavemente pela pista, dirigindo-se para o terminal que lhe tinha sido destinado.“Senhores passageiros mantenham os cintos até o avião estar imobilizado. Agradecemos a preferência pela nossa companhia”. Voltava a casa por um curto período, mas Yggdrasil passara a ser o seu lar.O sinal para manterem os cintos continuava ligado, o que não impedia os mais apressados de se levantarem começando a tirar malas. Ainda antes das portas se abrirem já se formara um pequeno engarrafamento ao longo do estreito corredor. Maria achou melhor continuar sentada até passar a confusão. As comissárias de bordo com o sorriso mecanizado despediam-se dos passageiros. A porta do cockpitestava aberta, permitindo ver o capitão e o co-piloto sentados a preencherem o registo de voo. As malas eram retiradas do avião, carregadas no carro que as transportaria para o interior do aeroporto e posteriormente colocadas nas respectivas passadeiras. Levantaram-se ao mesmo tempo quando já restavam poucos passageiros saindo juntos, desceram as escadas entrando no autocarro que os conduziria ao terminal das chegadas. Na passadeira rolante já as malas esperavam para ser recolhidas. Talvez por serem as férias de Natal o serviço funcionava como uma máquina bem oleada. Quando as portas automáticas se abriram, Maria viu os pais. A mãe como sempre muito elegante e com um lindo bronzeado das recentes férias. Ainda não chegara ao final da rampa e o pai já a abraçava, a mãe juntou-se-lhes. Com Pedro e Rita passava-se o mesmo, faziam-se apresentações e despedidas. Pedro optara pelo mesmo voo delas em vez de seguir directamente para o Porto. Os pais de Rita davam-lhe boleia até à estação de comboios de Entrecampos. O amor realmente fazia milagres e obrigava-o a mais algumas horas de viagem.O pai fez-lhes sinal para que o seguissem transportando-lhe a mala. O carro estava estacionado no primeiro piso. Saíram do aeroporto com a via verde evitando perder tempo. - Estás muito magra! O dinheiro que te enviamos não chega? Devias ter pedido mais. Já vi que a vida em Dublin não te está a fazer bem.E lá estava o que mais temia, a recriminação da mãe. - Deixa a miúda. Mal chegou e já começa o interrogatório.A mãe olhou para as unhas bem arranjadas. Até a filha regressar recuperaria o peso perdido, nem que lhe tivesse de dar a comida à boca.- Amanhã vamos às compras! Não gosto nada de te ver com essas roupas.Claro que a mãe tinha de dizer mal da sua camisola e calças de ganga preferidas, as únicas que ainda lhe serviam desde que usasse o cinto bem apertado. - Desde que não me obrigues a comprar saias!- E se for um vestido?- Também não. - o seu olhar cruzou-se com o do pai através do espelho retrovisor. Sorria-lhe complacente pedindo-lhe que tivesse paciência com a mãe. A viagem foi rápida, os pais viviam no Campo Grande não muito longe do aeroporto. Maria saiu do carro. A avó Lena já a esperava à porta de braços abertos, Maria correu ao encontro da segurança que lhe ofereciam, beijando-a. Era a sua confidente, a mãe que a escutava e aconselhava sem censuras ou julgamentos. - Vamos entrar, fiz tudo o que gostas. Temos muito que conversar. - passou-lhe a mão pelo cabelo - Estás muito bonita, mas pareces cansada. Maria percebia que a sua magreza a deixara preocupada, mas ao contrário da mãe, reagira sem censuras.Aproveitou quando se encontrava sozinha no quarto para enviar uma mensagem a Maeve avisando que chegara bem e já tinha saudades deles.            Os dias passavam. Dormia e comia com prazer. Na companhia da mãe e da tia comprara quase um guarda-fatos, felizmente e apesar de muitas reclamações tinham-na deixado escolher a roupa que queria. Naquele dia a saída tinha um programa mais ao seu gosto, almoçaria com as amigas no Centro Comercial Colombo onde faria as últimas compras de Natal. Não se esquecera dos MacCumhaill. Comprara uma mala em cortiça e um belíssimo colar em lápis-lazúli com pulseira e anel a condizer para oferecer a Maeve. Estava a sair da loja quando reparara num vestido da mesma cor. Quando Sergiu a visse o coração do rapaz era capaz de não aguentar. Para Freya levava uma capa alentejana, lembrava-a do dia que a conhecera e da forma maternal como a tapara com a sua própria capa. Para Fionn e Eoghan, tinha sido fácil, vinho. Queria levar algo para a mãe de Maeve. Contudo não sabia o que oferecer a alguém que não conhecia. Maria e as amigas sentaram-se num quiosque perto da FNAC a comer gelados e a beber café. Aquele era o momento certo para ligar a Maeve e pedir-lhe ajuda. O telemóvel chamava, o coração começou a bater acelerado, sentia as palmas das mãos suadas. - Dia duit!O Natal era sempre na sua casa, a avó insistia em preparar tudo sozinha. Os tios e primos chegavam ao final da tarde munidos de presentes. Era uma celebração tipicamente portuguesa. Camarão cozido, bacalhau cozido, pasteis de bacalhau, rissóis de camarão, croquetes de carne, chamuças, sonhos, tronco de natal, lampreia de ovos, pudim molotoff e não podiam faltar bilharacos, doces típicos de Ílhavo a terra onde a avó nascera. Os presentes só podiam ser abertos ao bater da meia-noite do dia vinte e quatro para vinte e cinco de Dezembro, felizmente para todos nem o pai ou o tio se continuavam a vestir de Pai Natal. Agora tiravam à sorte entre ela e os primos quem lia os cartões e entregava os embrulhos. Sempre com a mãe a relembrar, que antes de passarem ao próximo tinham de esperar que a pessoa abrisse o seu e agradecesse a quem lho oferecera. Era um processo moroso, numa família alargada como a sua. Eram duas horas da manhã quando o tio, sempre o último a sair, se despediu. Ajudou a avó a levantar a mesa, a lavar e arrumar a loiça. - Adoro-te vovó.A avó deu-lhe uma palmadinha carinhosa nas mãos.- Também gosto muito de ti, és a minha menina. Mas tu sabes disso.- Posso dormir contigo?- Nem precisas perguntar. – a avó segurou-lhe a cara com ambas as mãos, beijando-a na testa como fazia sempre.O mais importante naquela noite era sentir o amor da avó.O pai acabara de deitar o papel no contentor da reciclagem. Maria levou os seus presentes para o quarto deixando-os a um canto, guardá-los-ia mais tarde.No dia seguinte voltavam a reunir-se todos para jantar lá em casa. Nessa ocasião a avó servia Peru recheado, com puré de maçã, batatas cozidas, castanhas cozidas e novamente uma abissal quantidade de bolos e doces. Era garantido que quando regressasse a Dublin ia mais gorda, devia ser o suficiente para deixar a mãe feliz.
Os dias voaram. Faltava um dia para regressar à sua outra vida. Maria arrumou com calma na mala tudo o que ia levar. Passar o último dia com a avó era a sua prioridade. Sentia necessidade de lhe contar sobre tudo o que lhe acontecera. Pegou na sua Moleskinepara admirar a fotografia de Rhenan, faltava pouco para o reencontrar. A carta caiu. Com tudo o que acontecera esquecera-se dela. Fechou a porta do quarto sentando-se no canapé colocado por baixo da janela. O envelope tinha o seu nome escrito com a caligrafia dele. Abriu com cuidado tentando não rasgar, retirou a carta desdobrando-a. Leu e releu, custava-lhe acreditar no que lhe dizia. Esperava uma declaração do seu amor por ela, mas o que lia era uma sucinta explicação da história do Clã e do que lhe acontecera no dia do ataque que sofrera em Yggdrasil.“Quero que saibas por mim toda a história da minha família que também é tua.”Com a curiosidade aguçada Maria continuou a ler. “A minha mãe e tia eram crianças quando o seu Clã foi atacado por um Clã rival, os MacMorna. Queimaram homens, mulheres e crianças. Os que conseguiram escapar refugiaram-se nas montanhas, observando a chacina que se desenrolava no vale. Viram a sua rainha, a minha avó ser violada e empalada. O meu avô tinha morrido meses antes, de um ferimento provocado pelo líder dos MacMorna.Quando a ama da minha mãe e da tia viu os primeiros homens entrarem pelos portões do acampamento, escondeu-as no meio do denso mato. Morgaine era uma feiticeira Wiccan, colocou-as sobre um feitiço protector que as impediu de ouvir os gritos de aflição dos que eram mortos e de ver o que acontecia com a mãe delas. Ficaram escondidas durante horas até os últimos homens abandonarem o acampamento levando com eles todo o espólio que conseguiam transportar. Morgaine enterrou a minha avó debaixo de um Freixo para que a sua alma tivesse descanso. A partir desse dia criou a minha mãe e tia como suas filhas.Quando chegou a hora de reunirem o que restava do Clã, Morgaine pediu a ajuda da Deusa e ela mandou-a ir ter com Surt que vivia nos vulcões da Ilha do Fogo, na Islândia. Este entregou-lhe uma poção que as protegeria. Morgaine voltou e obrigou-as a tomá-la, essa poção era o próprio sangue de Surt, Sangue de Dragão.A minha mãe e tia cresceram, casaram-se e começaram as suas próprias famílias sob a protecção dos homens e mulheres do Clã que tinham jurando protegê-las. Muitas tribos nómadas acabaram por se juntar ao Clã jurando-lhes lealdade. Foi assim que voltámos a crescer e a reagrupar-nos, a sermos o Clã familiar que ainda hoje somos. Ao beberem o sangue de Surt ficaram a saber que passavam a ser as fiéis depositárias das chaves que ligam os três mundos, a sua única obrigação era mantê-las em segurança.O meu pai Cumball foi morto ao lado do meu tio, apanhados numa emboscada orquestrada uma vez mais pelo Clã MacMorna. Goll o seu líder queria a todo o custo acabar connosco, concluir o que os seus antepassados tinham começado. Com o seu ódio de morte ancestral fez um pacto com as trevas e com uma poderosa Bruxa. As Sombras que te atacaram naquela tarde, são almas caídas em desgraça, que conseguiram escapar do submundo. Julgamos que queriam apanhar a Maeve, mas confundiram-vos por trazeres a camisola dela vestida. Morgaine sabia que ao beberem o sangue de Surt tinham um preço a pagar. A minha tia Deirdre nunca teria filhos homens e só daria à luz uma filha que seria a sua herdeira. E a minha mãe, teria os filhos necessários para a protegerem. A Maeve é a herdeira da Ordem de Dracul. Eu e os meus irmãos somos guerreiros da Ordem de Drakkar. Damos a vida pelos nossos se for necessário. Temos vida eterna, bem como todos os nossos descendentes e só morremos às mãos de forças sobrenaturais. Quando Lochan o nosso irmão foi traído ficámos com um guerreiro sidhe a menos, mas nunca sentimos as trevas por perto até apareceres. No dia da tua chegada a Dublin, senti que algo ia mudar. Prometo, nunca te esconder nada. Quero que saibas que a tua presença é muito forte, és uma guerreira sidhe como o meu irmão Lochan, tens o poder de comunicar com os outros mundos. Ao juntares-te a nós irás ter várias forças que atentarão contra a tua vida.A minha mãe descobriu após beber o sangue de Surt que tinha poderes de sidhe, mas confessou-me que os dela não são tão fortes como os teus.Preciso que me perdoes quando te disser que tomei uma decisão por amor, apesar de saber que não tinha esse direito. A minha mãe disse-me que para ficarmos juntos teria de o fazer. Não pensei duas vezes. No dia que te feriram, dei-te o meu sangue. Perdoa-me por ter feito o que fiz sem te dar a hipótese de escolheres.Perdoa-me se estou a ser egoísta ao querer ter-te para mim pelos séculos que se avizinham.Perdoa-me se já não posso viver sem ti.Perdoa-me por amar-te mais do que à minha própria vida.Perdoa-me por te querer.Para sempre teu,Rhenan.” Maria continuava a segurar na carta. Custava-lhe acreditar em tudo o que lera, tentando compreender o que as palavras significavam.Sentia-se no mundo de Stephanie Meyer, mas estava bem acordada e não enlouquecera. Rhenan dizia-lhe que ficara imortal depois de beber o seu sangue e só conseguia pensar com repugnância no que fizera. Lembrava-se vagamente de ter engolido o líquido que Freya lhe dera a beber como se fosse xarope, nunca lhe passara pela cabeça que … não queria pensar naquilo. Só esperava não começar a morder jugulares. Sentia a cabeça latejar. Não percebia porque Rhenan lhe pedia perdão. Mas ia necessitar de respostas. E a primeira pergunta que lhe queria fazer era por que motivo tinham todos idades diferentes sendo imortais, quando é que o crescimento parara e começara a sua imortalidade?Fechou a carta voltando a colocá-la dentro do Moleskine junto da fotografia, longe de olhares indiscretos. Ligou o computador, ia enviar um email a Maeve. Esperava que o lesse e lhe respondesse, necessitava de desabafar sobre o que Rhenan escrevera.Tinha várias mensagens, uma delas da universidade. Eram as suas notas, a mãe ia ficar satisfeita e não podia voltar a reclamar sobre o seu regresso a Dublin. Começou a imprimi-las reparando que Rhenan lhe enviara uma mensagem dias após ter partido com a mãe. Abriu e o que leu deixou-a com a certeza que o amava como nunca amaria ninguém:“Agora que caí, só tu me podes levantar, mo ghrá.”Seria digna de tanto amor? Não sabia, mas estava decidida a lutar para lhe provar ser digna dele e não o contrário. A avó bateu à porta, abrindo-a sem entrar. - Acabei de fazer um bolo de chocolate e sumo de groselha. Vens?- Nem precisas perguntar duas vezes, - levantou-se baixando a tampa do computador, agarrou nas folhas impressas com os resultados do primeiro semestre - acho que vais gostar de ver isto.Sorria feliz ao entregar a pauta com as notas. Conseguia vislumbrar o orgulho da avó, se ao menos lhe pudesse contar tudo. Seguiu-a até à sala onde o inconfundível aroma a chamava.
Maria passou o último dia na companhia da avó. Como adivinhara a mãe ficara muito satisfeita com os resultados e prometera não a incomodar com coisas banais, mas não resistira e perguntara-lhe se tinha namorado. - Deixa a miúda em paz, não a estejas sempre a importunar com assuntos que não te dizem respeito. – uma vez mais a avó defendia-a como uma leoa. Discretamente apertou-lhe a mão debaixo da mesa em sinal de agradecimento.Perto da avó sentia-se segura. Se havia alguém que gostaria de ter a seu lado pelos séculos que se avizinhavam era ela. Queria que a visitasse, sabia que adoraria os MacCumhaill.
Como lhe fora ordenado, estivera todo o tempo perto da sidhe para a proteger caso necessitasse da sua ajuda e tinha sido o período mais aborrecido de toda a sua longa existência. Os humanos eram demasiado previsíveis e enfadonhos, tinham conseguido passar duas semanas a comer, beber e a comprar trapos desnecessários para se cobrirem. O que na sua opinião não os favorecia tanto quanto deveriam. A sidhe regressava a Yggdrasil em segurança. As Sombras estavam mais activas desde a reunião da família. Era a primeira vez em muitos séculos que Deirdre regressava a casa. Lug vira o espectro de Goll rondar a casa. Mas a protecção do Clã era muito forte, já nem ele lá conseguia entrar a menos que fosse convidado. Maria passara a ser um alvo e os Tuatha não podiam permitir que algo lhe acontecesse, era a única com a capacidade de encontrar o Colar de Brisingamen. Chegara a hora de regressar a Tara. Entre os Tuatha também existiam inveja e ódio, Danu tinha três maridos, três reis, porém preferia-o. Tinha o seu coração, o seu corpo e em contrapartida dava-lhe toda a liberdade. Se queria continuar a caminhar entre os mundos não podia perder a sua independência e ficar preso em Tara para toda a eternidade.Olhou para trás, para a névoa que separava os mundos e se fechava. Seria para sempre se não encontrassem o Colar de Brisingamen.




 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on March 26, 2020 03:00
No comments have been added yet.