A MP da Reforma: dois pesos e uma desmedida
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Aos poucos vai ficando mais claro o que os autores da reforma do ensino médio pensam sobre o lugar da Filosofia (e da Sociologia) no currículo escolar.
O texto da MP 746 não nos autoriza a pensar que a Filosofia, enquanto disciplina, sairá do novo currículo, pois ela atualmente faz parte da área de Ciências Humanas da Base Nacional Curricular. As áreas de conhecimento indicadas no Artigo 36 são essas: “I – linguagens; II – matemática; III – ciências da natureza; IV – ciências humanas; e V – formação técnica e profissional”. Por outro lado, em nenhum momento o atual texto da MP esclarece a composição interna de cada uma dessas áreas. Poderíamos ser otimistas e pensar que em nenhum momento da MP ocorrem palavras como “biologia”, “física”, “química”, “história”, “geografia”, “filosofia”, “sociologia”, e sim apenas designações de “áreas de conhecimento”. No entanto fica cada dia mais evidente que a manobra principal consiste em uma redefinição das “áreas de conhecimento” que cria uma reforma com dois pesos e uma desmedida.
Essa divisão em áreas surgiu em 1998 com os Parâmetros Curriculares Nacionais e foi reformada em 2011 com as Orientações Curriculares Nacionais (que fixou as atuais quatro áreas, natureza, matemática, linguagens e humanas). Qual é a redefinição que está sendo preparada pelos mentores da reforma? Nada menos do que o desembarque da Filosofia e da Sociologia como disciplinas na área de Ciências Humanas. A julgar pelas declarações recentes a área de Ciências Humanas será composta apenas por História e Geografia, com a indicação de Filosofia e Sociologia como temas transversais. Essa desmedida configura um tratamento assimétrico em relação às demais áreas.
Veja-se a declaração da Professora Maria Helena Guimarães de Castro, atual Secretária Executiva do MEC (Veja, 5 de outubro, 2016, p. 19):
Um dos temores dos pais é que o ensino termine empobrecido. Há risco real de disciplinas como sociologia e filosofia serem eliminadas? “Todo e qualquer passo dado em relação ao currículo obrigatório será definido depois de se ouvirem os melhores especialistas em cada área e os secretários de Educação. Ainda passará pelo crivo final do Conselho Nacional de Educação. A questão não é no que o MEC e eu pessoalmente acreditamos. Existe um rito. E o desfecho deve se dar até o segundo semestre de 2018.”
Mas filosofia e sociologia ficarão ou não no novo currículo? “Como disse, tudo está sujeito à apreciação das instituições envolvidas com o currículo. Posso afirmar que nenhum conteúdo relevante, como sociologia e filosofia, ficará de fora, ainda que não seja ensinado da maneira como é hoje, em disciplinas estanques.”
A senhora está dizendo que certas disciplinas podem acabar, certo? “Há quatro grandes áreas de conhecimento na LDB: linguagens, matemática, ciências humanas e da natureza. A experiência mundial mostra que, para contemplar todas elas, não é preciso necessariamente organizar o conteúdo em disciplinas divididas do modo tradicional. O professor pode, por exemplo, ensinar a história da Revolução Francesa explicando seus movimentos sociais e o caldo filosófico no qual ela foi ancorada. Ou ainda dar aulas de geografia junto com matemática, usando gráficos, tabelas e a lei das probabilidades para esclarecer os fenômenos demográficos.”
A última resposta da Professora Maria Helena dá a entender que o MEC respeita a divisão em quatro áreas mas que serão alterados, de alguma maneira, os termos da Resolução CNE N. 2, de 30 de Janeiro de 2012, que define as Diretrizes Nacionais para o Ensino Médio. O parágrafo único do Artigo 9 das Diretrizes diz que os componentes curriculares que integram as áreas de conhecimento, nas Ciências Humanas, são: “História, Geografia, Filosofia, Sociologia.” Esse entendimento prevalece desde 1998 e esteve presente na elaboração recente da Base Comum Curricular. O que mudou, no caso da Filosofia e Sociologia, foi a promoção delas, em 2008, ao status de “disciplina”. A terceira resposta da professora é ambígua: ou bem História e Geografia vão ser as únicas disciplinas nas Ciências Humanas (e os conteúdos de Filosofia e Sociologia devem estar ali integrados) ou bem haverá apenas uma disciplina na área, “Ciências Humanas”.
Antes que o leitor pense que estou imaginando coisas, convém lembrar que existe em funcionamento no Brasil de hoje, por obra e graça de decisões tomadas no âmbito da expansão recente do ensino superior, mais do que uma dezena de Licenciaturas em Ciências Humanas! Assim, não seria de estranhar que algumas escolas simplesmente contratassem esses novos profissionais, que dariam conta, em uma única matrícula, de História, Geografia, Filosofia e Sociologia. Creio que as duas possibilidades existem, mas a tendência é a retirada da Filosofia e Sociologia da grade obrigatória, não porque tenha sido riscada a linha da LBD que criou a obrigatoriedade, mas sim porque os nossos congressistas entendem de currículo tanto quanto eu entendo de fissão nuclear.
Senão, vejamos: no dia de hoje, 22 de Outubro de 2016, o Estadão informa que o relator da reforma do ensino médio no Congresso, senador Pedro Chaves (PSC-MS), “prevê que as escolas não serão obrigadas a ofertar todos os conteúdos e é a favor da retirada de disciplinas, como Filosofia e Sociologia, da grade obrigatória.” Tomada ao pé da letra, há nessa frase um erro curricular e categorial. Quando falamos em ensino, “disciplina” é um conceito que simultaneamente organiza o tempo e o espaço escolar e funciona de modo diferente de “conteúdo”, que diz respeito apenas à dimensão conceitual. Assim, não se pode confundir conteúdo e disciplina.
Há mais esclarecimentos no Estadão de hoje sobre a posição do Senador Pedro Chaves. Ele afirma que no núcleo flexível do currículo os alunos poderiam escolher entre uma das cinco grandes áreas: Linguagens, Matemática, Ciências Humanas, Ciências da Natureza ou Ensino Profissional (técnico). Até aqui tudo bem. Mas ele encerra suas declarações ecoando as declarações da Professora Maria Helena de duas semanas atrás: “Não sou a favor de que as disciplinas (Filosofia e Sociologia) sejam retiradas da grade, mas que sejam incluídas como conteúdos transversais.” O repórter esclarece que o Senador sugeriu que “Filosofia e Sociologia sejam abordadas nas aulas de História, assim como a disciplina de Artes poderia ser estudada junto com Literatura.”
Fica evidente que a questão das áreas de conhecimentos, na retorta da reforma, está sendo pensada com dois pesos e uma desmedida. Algumas áreas serão compostas por “disciplinas”, outras áreas serão compostas por “disciplinas” e por “conteúdos transversais”. No caso da área de Ciências Humanas, ela poderá ser composta ainda mais singelamente por apenas uma nova disciplina, “Ciências Humanas”. Fica evidente, quando comparamos a fala do representante do Executivo com a fala do membro do Legislativo, que os poderes convergem nesse desembarque. É uma pena que o mote para isso também tenha tido o apoio de declarações muito públicas da presidenta que foi afastada. Como diria aquele teórico de cuyo nombre no quiero acordarme, depois de dois passos para a frente, parece que vamos dar dois passos para trás.
Uma proposta mínima seria a manutenção da Filosofia na Base Nacional Curricular de modo que a escola pudesse manter a disciplina qua disciplina ou como conteúdo transversal. Pelo que dizem os citados acima, essa opção será retirada, o que não combina com o fato que a disciplina, nesses poucos anos, conquistou boa presença em muitas escolas. Depois de quase uma década de ensino de Filosofia não me parece uma boa ideia simplesmente arrasar o terreno.
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