SETSUKO HARA (1920-2015)

(Obituário escrito por mim e publicado originalmente na revista LER.)





A
actriz Setsuko Hara (1920-2015), que desapareceu a 5 de Setembro [de 2015]  (o anúncio
surgiu mais de dois meses depois), participou pela última vez num filme em 1962,
mas perdurou na memória dos cinéfilos graças sobretudo aos filmes que Yasujiro
Ozu realizou entre 1949 e 1961. Nestes, a sua personagem é quase sempre uma
mulher inteligente, sensata e activa, mas condicionada por conflitos entre
gerações ou por situações familiares complexas. Representar personagens
positivas e gentis pode ser uma vantagem aos olhos da posteridade, mas a
explicação para o facto de Hara ser tão recordada e chorada mais de meio século
depois da sua última aparição não se pode resumir a isso. Como escreveu Miguel
Esteves Cardoso, a propósito da literatura: não basta escrever bem sobre coisas
belas e moralmente defensáveis: convém também ser-se boa pessoa. Hara pertencia
àquele rarefeito conjunto de actrizes que dão corpo a personagens plenas de uma
humanidade sereníssima e que o fazem esplendidamente (porque é também de um
talento assombroso que se está aqui a falar). Quanto à pessoa, essa remeteu-se
à reclusão quando abandonou o cinema, mas deixou atrás de si uma presença humana
que transcende os filmes e os anos e que condensa toda a decência, doçura e
verticalidade que o cruel século XX teve para oferecer. Setsuko Hara foi a
amiga, a irmã, a filha, a mãe, a mulher e a amante que todos julgamos, muito lá
no fundo, poder vir a merecer. Os minutos finais de
Viagem a Tóquio (1953), e
em particular a cena em que Hara e o (também imenso) Chishu Ryu, de três
quartos, parecem trespassados pelos cabos eléctricos omnipresentes nos filmes
de Ozu, são momentos em que se percebe que o cinema é afinal uma maneira de tocarmos
e olharmos de frente esse estranho fenómeno que se chama estar vivo no mundo.





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Published on October 16, 2016 12:55
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