Viver ou continuar morto?

b64e3610-80cf-428c-88f0-55f5ccadafaa


 


Quando uma história real sensacional cai no colo de um escritor, não se pensa duas vezes.


Quando uma história real sensacional tem como protagonista o próprio escritor, não se pensa, age.


O que aconteceu com o escritor J P Cuenca [na real vida] levantou mil questionamentos.


Mas só havia um caminho, escrever sobre. Só pela trama, já seria o livro da vida dele.


Ou o livro do ano.


E é ambos.


Num certo dia, ele descobriu que fora expedido seu atestado de óbito.


Para a teia infernal da burocracia, ele estava morto, e, pior, seu cadáver, reconhecido.


Provar que estava vivo não era tão simples assim. Desejar-se vivo…


Como num dilema de Antonioni, ele foi atrás da história, descobriu quem era ele morto, descobriu que o local da morte não existia mais: foi tomado pela escavadeira que transforma o Rio no momento pré-olímpico.


Desistir ou insistir.


Alguns amigos desaconselharam a se aprofundar na história.


Mas Cuenca percebeu em sua morte algo recorrente, a morte de um escritor após cada obra, a morte de uma relação, a morte de uma cidade, que é morta e se reconstrói, a inutilidade da vida, sua fugacidade.


Que diferença faria ele estar vivo ou morto para o circuito que frequenta?


E se a mulher larga dele, porque ele não quer ter filho, perdeu sua função social?


Sua genética se encerrará nele? Seus livros bastarão?


Se Pornopopéia [Reinaldo Moraes] é a tragicomédia da pretensiosa vida cultural paulistana, em DESCOBRI QUE ESTAVA MORTO, livro que acaba de lançar, vê-se um Rio [Brasil] tentando resistir à sua mais uma vez eminente decadência [cultural].


Depois da decolagem abortada pela The Economist.


Três momentos o compõe.


A descoberta da morte.


Aceitar ou ir atrás.


Investigar [vai morar onde um corpo foi reconhecido como o seu, um prédio novo da nova Lapa].


Se aproveitando do dito de outro defunto-narrador, “franqueza é a primeira virtude de um defunto” [Brás Cubas], ele traça um perfil impiedoso do indiferente carioca, que durante o tiroteio numa comunidade vizinha aumenta o som, evita as janelas e não para a festa.


Numa alienação gestbyniana, de tudo acontece na festinha inconsequente de Santa Tereza.


Inclusive a degustação de um peixe cru preparado com os temperos e calor de uma… vagina, o shoshomi [“sashimi marinado dentro da xoxota de uma mulher”]


Aqui vai um trechão.


Livro imperdível:


este trecho extraí de uma prova em pdf


 


Naquele Rio de Herdeiro, bolsa de capital social onde


todos eram afilhados, filhos ou protegidos de alguém, meu


brilhareco de escritor publicado era visto com curiosidade e


certa condescendência. Eles sabiam que eu não tinha vínculos


cartoriais ou de nobreza. E tampouco algum tostão.


Falava-se muito. Nosso aparente autofascínio escondia


um espírito de competição, uma hostilidade latente. Em


todas as conversas havia o desejo de mostrar-se mais feliz,


mais saudável, mais adaptado, mais jovem, mais bonito,


mais sofisticado e mais caro. Melhor. E sempre naquele


agora um pouco adiantado ao tempo, no limiar entre o que


já era e o que será, no instante anterior à adoção em massa.


Na moda.


Assim, quando não falavam da alta dos preços dos


aluguéis, essas rodas podiam passar horas a fio listando cafés


biológicos (3 pontos), restaurantes orgânicos (5 pontos),


praias privativas no Mediterrâneo (6 pontos) e casas de


jazz (8 pontos) ou clubes clandestinos de música eletrônica


(10 pontos) que só eles conheciam em terras estrangeiras.


Os homens descreveriam receitas exclusivas de risoto


com trufas (6 pontos), o intenso e amplo buquê do vinho


californiano do mês (8 pontos), a qualidade da maconha


hidropônica importada por cem euros o grama (10 pontos),


as propriedades de um novo equipamento quadrafônico e


valvulado de som recém-chegado da Inglaterra (15 pontos).


As mulheres falariam de suas aulas de Hatha (3 pontos),


Ashtanga (6 pontos), Bikram (10 pontos) e outras variações


de ioga, de como as roupas estavam baratas na Top Shop em


Nova York (5 pontos), como furaram a fila para a bolsa-desejo


da última estação na Céline em Paris (20 pontos), da dieta


bem-sucedida do verão (10 pontos), da sua obsessão pelo


redesenho de partes específicas do corpo (15 pontos), dos


orgasmos conquistados nas últimas semanas (20 pontos) e,


claro, dos fi lhos que tinham (500 pontos) ou pretendiam ter


(-500 pontos).


Os filhos eram parte indispensável dessa busca pela


perfeição e pela vida fabulosa que queriam conquistar.


Muitos desses casais, por volta dos trinta e poucos anos de


idade, começavam a se multiplicar como coelhos em ondas


simultâneas. Logo trocariam suas fotos de perfil nas redes


sociais por imagens dos bebês que, nos anos seguintes, se


transformariam no centro gravitacional das suas vidas, dos


seus desejos e das suas personalidades. Até que, em algum


ponto da adolescência dos filhos, vissem sua fantasia de


controle ruir.


Mas, bem antes de sentir-se órfã do filho que teve, a


mulher que conquistasse esse requisito seria calorosamente


invejada, em silêncio pouco discreto, pelas outras sem-filho.


Para elas, L’enfant-roi não apenas sacramentava a utilidade


final dos seus úteros, trompas e tudo o que os acompanhava,


mas também a aparente tomada definitiva do marido, o sonho


do homem-próprio recém-conquistado – mesmo que depois


tivessem que fazer terapia de casal e desejassem o marido ou


a mulher do próximo.


Para fugir desse roteiro, eu adiava planos com a minha


mulher e, naquela mesma semana, quando falávamos de


mais um casal que anunciava sua prole, informei, distraído,


enquanto passava um café e ela fritava um omelete:


– Se você engravidasse, eu te pediria para fazer um aborto.


Ela engoliu o choro.


Na festa, eu bebia encostado numa parede e via os casais


se distraindo dos seus acordos de fidelidade.


Estava sozinho naquela noite, o que me permitia


observar de fora o desvio das conversas, já envoltas numa


sombra turva e nebulosa de bebedeira, para o tema da


orgia, da suruba, do casal liberal, de quem faria um ménage


à trois com a amiga atriz – sempre havia um inesgotável


estoque de atrizes belas e disponíveis nos sofás do Rio de


Janeiro – ou mesmo uma troca com o casal sentado ao lado.


E, então, os homens iera comum que permitíssemos que


Suas nossas mulheres se beijassem e nos issemseduzíamos


com calculada liberdade, para depois emvoltarmos para


casa ae roncarem ao lado das própriascompanhias de


sempre. Aquele mundanismo não costumava ultrapassar


palavras e olhares, com a exceção de esporádicas visitas a


boates de burlesco e swing que eles frequentávamosa com


a expressão antropológica de velhas francesas em excursão


à África Colonial.


Aqueles jovens casais de sucesso dissolveriam-se pouco


a pouco na modorra de suas produtivas e bem-adaptadas


rotinas, até seus divórcios serem negociados em termos


saudáveis, como tudo deveria ser. Eles prolongariam seus


matrimônios ao limite das suas possibilidades pelo simples


medo de que seus parceiros pudessem ser felizes com outra


pessoa, alguém que fosse a antítese das suas limitações.


Ou pelo menos era o que eu fazia na época. Era


insuportável a ideia ade que minha mulher pudesse ser feliz


com outro homem. Eu não conseguia transformar o maior


amor da minha vida em algo deste mundo ou mesmo num


interesse concreto. Ainda não a havia largado apenas porque


a considerava minha propriedade.


Tudo acaba. A merda é que depois continua, eu pensava,


até que os dois terminassem como dois soldados exaustos,


perdidos, lutando do lado do inimigo.


 


2


Empunhando um telefone dourado, um jovem adulto


mostrava as fotografias de seus dois últimos lares em


diferentes continentes:


– Exatamente o mesmo apartamento.


Aquela era uma bolha com pretensões cosmopolitas. As


conversas, modas e bebidas, em festas como a do Tomás


e nos bares e clubes correspondentes a elas, tentavam


ultrapassar a geografia. Quando cheguei, um grupo de


executivos comentava suas temporadas em megalópoles


financeiras. Mudavam de casa entre Londres, Hong Kong ou


Nova York sem hesitar, como o fluxo flutuante de capital que


administravam. A cada novo endereço, usavam um serviço


que lhes arranjava desde a decoração da casa até a escola


inglesa das crianças e uma lista aprovada de restaurantes de


cozinha internacional e lojas de design.


– Ela achou um imóvel com o formato igual ao anterior. E


mandou refazer o piso, sem que pedíssemos, para que match


o que tínhamos no Upper East e os tapetes.


A sala em tons de cinza, o sofá Chesterfi eld de trinta mil


dólares, a poltrona Charles Eames original, a luminária em


formato de refletor de cinema, o tapete irônico de zebra.


Dentro do circuito que ansiávamos frequentar, o mundo


era algo semelhante a isso: um bar de hotel, uma casa da


Wallpaper, um ensaio de moda da Monocle com a trilha


sonora de uma playlist da Pitchfork. A estética domesticada,


que transformava endereços Time Out em McDonald’s do cool


e expedições à Somália em turismo exótico por publicações


como a Vice, era consumida com avidez por esses agentes do


capitalismo e pela parte menos hábil para o trabalho dessa


jovem boemia – a maioria de nós naquele apartamento, então


trabalhando como freelancer em comunicação, publicidade,


jornalismo, tv ou nas margens do mercado editorial e do


mundo acadêmico.


Esse segundo grupo, como dispunha de tempo e não


obedecia horários de escritório ou de bolsas asiáticas,


relia romances de Bolaño com lupas, acalentava vagas


inquietações metafísicas, estocava discos de vinil em casa e


frequentava festivais de música pelo mundo – uma vez por


ano, quando a cotação do dólar permitia. Era uma forma de


se sentir menos miserável ao lado de quem desfrutava do


dinheiro e do poder ao qual nunca teriam acesso. Ao menos


lhes restava comprar identidade por meio com um gosto


supostamente original e independente.


Enquanto alguns se concentravam no que comprar, a


preocupação dos estrangeiros que frequentavam as festas


do Rio pré-olímpico era precisamente a oposta. Em tempos


de crise europeia, impressionava o número de jovens


portugueses e espanhóis dispersos por esses salões, falando


em voz baixa e cuidadosa com os brasileiros prósperos e


estabelecidos.


– Estou cá a prospectar.


– Sí, un taller de arquitectura.


– Lá en el alto del Vidigal. Bien lá no topo.


Eram como os ingleses bem-vestidos e com cara de fome


no jardim de Jay Gatsby. Sem dúvida, tentavam vender alguma


coisa – ou a si mesmos. Pareciam fantasiar com a quantidade


de dinheiro que rolava solta naquela vizinhança e estavam


convencidos de que tudo seria deles mediante poucas palavras


no tom certo. Bando de otários. Mas não era difícil culpá-los.


Em 2011 o céu andava azul-turquesa como uma nota de cem


reais, e uma oferta aparentemente ilimitada de riqueza e gente


chegava ao Rio de Janeiro sob a nuvem inebriante de poeira


levantada pelas novas construções.


Não apenas o Tomás e seus amigos financistas


comemoravam, mas também os grandes empreiteiros, os


conglomerados de comunicação, os concessionários públicos


de transporte e serviços, os célebres ilusionistas midiáticos


exploradores de commodities alavancados no capitalismo de


Estado, os condes da burocracia estatal e, por fim, a classe


política, agente e sócia do dinheiro que a empossava. Andares


abaixo, todos nós esperávamos por alguma migalha grudando


no dorso desses tubarões como rêmoras famintas – unidos


por um enorme e aparentemente incondicional talento para a


esperança. Entre a primeira e a segunda década do século xxi,


o mesmo processo econômico que fez os preços dos imóveis


se multiplicarem por três ou quatro transformou o real na


moeda mais sobrevalorizada do mundo. E, na cozinha do


apartamento, um homem de calça cáqui agora dava conselhos


a Tomás Anselmo girando o dedo num copo de uísque com


soda e muito gelo:


– Olha, meu caro, se eu fosse você, jogava todo o investimento


no di e a rentabilidade naquele fundinho de ações. Eu tenho


conversado com o pessoal do Factual e eles têm sido obscuros


sobre o mercado, então é papo de proteger o seu principal e só


tirar a rentabilidade de um fundo de renda fixa.


Menos informados, nativos de todas as idades arregaçavam


as gengivas para repetir orgulhosos as manchetes do New


York Times e do Guardian sobre o aumento do custo de vida


no país – sem desconfiar ou esquecendo propositadamente


que a abundância de dinheiro era a mesma que financiava


empréstimos de risco e os negócios de megapicaretas


célebres e que drenava a competitividade da indústria.


Quando a Economist publicou, em novembro de 2009, pouco


depois que o Arcanjo Gabriel anunciou a Profecia Olímpica,


que o Brasil em algum momento da década “posterior a


2014” seria a quinta economia do mundo, superando o


Reino Unido e a França, que o único risco do Brasil, dali em


diante, seria o orgulho excessivo, que o Brasil, ao contrário da


Índia, não tinha conflitos étnicos e insurgentes, que o Brasil,


ao contrário da China, era uma democracia, e, ainda, que


o Brasil, ao contrário da Rússia, exporta mais que petróleo


e armas, acreditou-se que o futuro do país do futuro do


pretérito havia chegado.


Anos depois, o mesmo Tomás Anselmo diria na sua pose


de burguês tomador de uísque e intelectual especulativo:


– A edição da Economist com o Cristo Redentor decolando


na capa foi o início da nossa derrocada. Eles penduraram


essa revista nas paredes dos escritórios da cidade inteira,


como um quadro num altar. A maioria nunca leu o especial


de vinte páginas sobre o futuro mágico do Brasil, mas


tinha aquilo enquadrado. Que semanas e que meses: havia


manhãs naquele tempo! Aceitaram aquela matéria como


uma teofania, como se tivesse sido escrita não por um grupo


de jornalistas gringos com tentáculos ligados aos fundos de


investimento do próprio Belzebu, mas por um apóstolo em


êxtase transcrevendo a voz de trombeta de Deus lhe narrando


o paraíso e mandando que enviasse o texto às Sete Igrejas


da Ásia. Acreditamos naquele momento que estávamos


condenados à prosperidade… e, infelizmente, esse não foi o


nosso último ato ingênuo. Antes a puta da Economist tivesse


reproduzido em suas páginas sobre o Brasil o apocalipse de


São João, já que agora as coisas antigas desapareceram e tanta


gente enxuga dos olhos toda lágrima, disso não há dúvida.

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 04, 2016 08:35
No comments have been added yet.


Marcelo Rubens Paiva's Blog

Marcelo Rubens Paiva
Marcelo Rubens Paiva isn't a Goodreads Author (yet), but they do have a blog, so here are some recent posts imported from their feed.
Follow Marcelo Rubens Paiva's blog with rss.