A libertação de um crente

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Rodrigo Constantino

"Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas, interiormente, são lobos devoradores." (Mateus 7:15)

Um relato leve e divertido, porém corajoso e com momentos tocantes. Assim é Ímpio: o evangelho de um ateu, do jornalista Fábio Marton. O autor mostra ser espirituoso já no seu currículo, onde diz: "Depois de ser evangélico, foi esquerdista, metaleiro, nacionalista, niilista, dark, punk e anarco-capitalista", justificando que "é uma vida muito longa para se persistir em só uma idéia errada". E, de fato, seu livro demonstra como qualquer tipo de seita fanática pode destruir a liberdade ou mesmo uma vida.

Nascido em família humilde de crentes, incluindo um avô pastor, Fábio consegue, por meio de suas próprias reflexões, libertar-se da doutrinação imposta desde cedo em sua casa. Sua infância foi marcada pelos dogmas pentecostais que limitaram absurdamente suas escolhas e, pior ainda, incutiram sentimento de culpa somente por desejar fazer aquilo que todos as outras pessoas de sua idade faziam. Ser "normal", com amigos e namoradas, gostar de rock e ir a festas eram coisas complicadas para o "pastorzinho" diferente, que desde muito cedo aprendera que tudo aquilo era obra do diabo.

O livro começa com uma citação de H.L. Mencken, um dos ateus mais iconoclastas e irreverentes: "Devemos respeitar a religião de um sujeito, mas apenas no mesmo sentido e até o limite em que respeitamos sua teoria de que sua mulher é bonita e seus filhos são espertos". A passagem quer dizer que não somos obrigados a tratar como tema sagrado aquilo que é sagrado apenas para a subjetividade do indivíduo. Claro que seria uma ofensa desnecessária ridicularizar a crença alheia sem mais nem menos, mas igualmente ofensivo – e autoritário – , é querer obrigar os outros a encarar como Verdade absoluta e objetiva aquilo que não passa de uma opinião particular sem qualquer embasamento científico.

Na introdução, Fábio assume ser um ateu, mas logo depois explica que todos somos, de fato, ateus. Ao menos em relação a todas as divindades já inventadas pelos homens na história, que são abundantes. O cristão que não acredita em Zeus, Osíris, Ganesh, Amaterasu e Tupã é um ateu quando se trata destes deuses. O ateu vai apenas um passo além, como Fábio coloca: "Entre mim e o cristão, há apenas um deus a mais do qual duvido". Na verdade, não se pode negar algo que não existe, e o ônus da prova cabe aos crentes. Ninguém assume que Saci Pererê existe só porque ninguém prova o contrário.

Fábio transitou por várias das igrejas protestantes durante sua vida, e fica claro como há rivalidade entre elas. Uma disputa para ser mais "cristã" que a outra, todas em busca do monopólio da fé "correta", assumindo até mesmo que crentes de outras seitas vão para o Inferno. Talvez seja aquilo que Freud chamou de "narcisismo das pequenas diferenças", ou então o fato de que o mercado das crenças é bastante concorrido, e cada igreja disputa a mesma alma, o mesmo perfil de ovelha para pastorear (normalmente cobrando uma tarifa elevada pela salvação eterna, com direito a boleto bancário e tudo).

Algo que chama a atenção no livro é a ansiosa busca pelo fim do mundo. Os crentes chegam a desejar que isso aconteça, e muitos oram com este intuito. Logicamente falando, até faz sentido: se esta vida é uma provação constante da fé, e após a morte os crentes finalmente terão a recompensa eterna por seu sacrifício, que louco não gostaria de ir logo pegar este fantástico prêmio? Mas, no fundo, penso que motivadores mais emocionais estão por trás desta torcida pelo Apocalipse: a falta de amor pela própria vida, com pitadas fortes de inveja daqueles que parecem mais felizes (o que não é difícil, já que aos crentes são negados inúmeros prazeres da vida). Tanto que os crentes que procuram sinais do fim do mundo iminente sempre se regozijam com a crença de que agora, finalmente, os incrédulos vão pagar por seus pecados, enquanto os justos serão arrebatados, transportados para o Paraíso.

A curiosidade foi despertada desde cedo em Fábio, que gostava de questionar. Ele não sabia ainda que esta inclinação à ciência entrava em conflito com a igreja, até por uma questão lógica: "Por que Deus haveria de fazer as pessoas espertas se seria um problema elas serem espertas?" Diante de "verdades" absolutas, Fábio começava a fazer perguntas incômodas, e isso era visto, até por ele, como obra do diabo, que tentava desviar uma ovelha do rebanho. Quando uma dúvida se instalava em sua cabeça, a reação automática era encará-la como tentação do diabo. O problema é que a matraca incrédula em seu cérebro começava a ter idéias demais pra serem ignoradas.

Muitas contradições começaram a ficar aparentes, e Fábio foi capaz de compreender "milagres" por uma ótica bem mais prosaica. O poder de sugestão, especialmente sobre aquele que deseja muito acreditar, jamais pode ser subestimado. Pessoas buscam desesperadamente confirmação para suas teorias prévias, ignorando tudo aquilo que vai contra suas crenças estabelecidas. Pessoas ingênuas em crise, então, costumam ser um prato cheio para abutres de plantão. Quando entendeu isso, pareceu a Fábio que o "demônio" que surge em cultos era apenas autossugestão alimentada pela técnica da hipnose. Para quem quiser pesquisar mais sobre isso, recomendo os vídeos de Derren Brown no YouTube.

Começou a incomodar Fábio a escolha altamente seletiva das passagens bíblicas também. Ele alega que nunca entendeu isso de "as pessoas escolherem que leis seguir do Velho Testamento como quem pinça o frango à passarinho e deixa o jiló de lado num bufê". Realmente, não existe um único crente que siga literalmente a Bíblia, até porque se trata de um livro muitas vezes contraditório, ambíguo ou radical e ultrapassado. Um machista, por exemplo, pode encontrar boas passagens bíblicas para justificar sua misógina vontade de manter a mulher submissa. Uma vez que as "leis" do livro "sagrado", que já foram escolhidas por homens no passado, devem ainda assim passar por novo filtro moderno, quem decide quais valem e quais devem ser descartadas? Com qual critério?

O que Fábio começou a notar nos grupos de crentes que participou era a absoluta dependência da igreja. Alguns mais radicais chegavam a fazer uma analogia direta, afirmando que Jesus era sua heroína. Eram grupos fechados, sem interesses fora daquilo, com desconfiança ou preconceito contra todos aqueles que não faziam parte da seita. Enfim, o típico sentimento tribal que cria o "nós contra eles". Como Fábio argumenta, é "saudável ter um grupo de amigos com interesses em comum e ser ajudado por eles em situações de necessidade", mas "viver num círculo encapsulado contra o mundo exterior, acusado de ser hostil e impuro, isso não me parece uma boa coisa".

Algumas pessoas podem concordar com isso tudo, mas ainda assim alegar que o conforto trazido pela fé cega compensa. O problema é o preço deste falso conforto, não só o monetário, mas principalmente o de outro tipo. No caso de Fábio, ele foi alto demais. Uma adolescência e uma juventude vividas com baixa autoestima, sob o sentimento constante de culpa somente por desejar ser normal. Um garoto esperto que gostava de pensar e fazer perguntas, mas encontrando na religião um obstáculo permanente. Finalmente, Fábio conseguiu se libertar: "Não posso aceitar um Deus que quer que eu tenha ódio de minha própria mente". Ele não era mais uma ovelha obediente, até porque ovelha é um bicho bem burro: "basta um cachorro para segurar duzentas ovelhas". Quando Fábio chegou a esta conclusão, viu-se livre, em uma vida que voltava a fazer algum sentido, e que ele podia agora amar.
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Published on May 14, 2011 05:17
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