O casamento real como eu o vi

Não vale a pena disfarçar: para um homem da minha provecta idade, uma rapariga como Kate Middleton, com a idade de Kate Middleton e a silhueta de Kate Middleton e a ligeira mas indisfarçável malícia que Kate Middleton esconde sob o olhar de princesa, pode bem ser mais do que suficiente para reatear a centelha da paixão, se ainda é reateável tal coisa, após estes anos todos (como é que se dizia na minha meninice, há tantas e tantas décadas?) a ver com os olhos e a comer com a testa. Bastará, para tal, estarem um dia reunidas duas ou três importantes condições: haver apenas cinco mulheres no mundo e as outras quatro estarem ocupadas, terem sido retirados do mercado os derradeiros exemplares em DVD de Uma Canção Para Bobby Long, com Scarlett Johansson aos vinte anos, e estar a chover de tal maneira que ambos os campos da Aroeira se encontrem impraticáveis.
Quanto ao resto, lamento muito, mas Kate Middleton é dona de uma beleza bastante banal, categoria amplamente menos excitante do que a das mulheres portadoras de uma fealdade especial – e ao seu príncipe não se poderá fazer melhor elogio do que sublinhar a injustiça de se encontrar precocemente careca e de ter levado com uma prancha na cara, parecida (a prancha, isto é) com aquela com que o Coyote levou quando perseguia o Papa-Léguas sobre um chão de tábua corrida ainda mal pregado ao solo. Donde (e só por isto já valeu a pena escrever este texto: pela oportunidade de começar um período com a palavra "donde") dizer que se tratou do "casamento do século", o número meio circense a que pudemos assistir aqui há uns dias pela TV, não passa provavelmente de um daqueles chavões jornalísticos a que nenhum de nós alguma vez escapou, tipo "pedrada no charco" ou "elefante em loja de cristais" (no pun intended).
Casamento do século era se pudessem subir novamente ao altar Ted Hughes e Sylvia Plath, pelas razões óbvias. Casamento do século era caso Sartre e Simone de Beauvoir voltassem à Terra para revogar o seu statement filosófico-conjugal, por razões mais óbvias ainda. Casamento do século era em tendo casado neste século os pais de Lionel Messi, por razões sobre todas as demais óbvias. Já isto foi apenas mais um casamento igualzinho a outro que vimos há trinta anos, à partida com a mesma utilidade festivaleira do outro que vimos há trinta anos, mas por azar com dois mocinhos sérios nos principais papéis, o que na melhor das hipóteses o tornará notável no momento da apresentação dos rebentos, ao longo da cerimónia de coroação e no dia em que Kate, com quase toda a certeza já bem velhota, for ao cemitério entregar o amo ao Deus de Henrique VIII, que isto é mesmo assim, elas comem menos gorduras e duram mais e não há nada que a gente possa fazer quanto a isso.
Sobre o comportamento dos súbditos ingleses, não tenho muito a dizer, a não ser que cada povo tem a tradição tauromáquica que merece. Já que Portugal tenha paralisado para assistir a tal coisa, incluindo directos de três estações e seis canais de televisão, manchetes nos jornais todos, comentários de figuras de Estado e astrólogos, fóruns na rádio e vox pop dispersos por todo o país, pois não me ocorre outra explicação senão um entendimento um tanto largo das teses de Lorenz – vocês sabem, o da Teoria do Caos, do Efeito Borboleta, etecetra e tal –, na inusitada presunção de que as endorfinas libertadas pelo acto de pensar perpetrado (é que é mesmo essa a palavra, perpetrado) por uma reformada de Vila Velha de Ródão seja suficiente para provocar um tufão na longa tradição dos casamentos reais britânicos e este para subverter a ordem das coisas e instalar o caos.
No mais, saúde-se a circunstância, e apesar dos percalços da História, de as gerações de cronistas sociais lusos continuarem a renovar-se adequadamente. Bem vistas as coisas, a cobertura que a TV portuguesa dedicou ao casamento de William e Kate, com Júlia Pinheiro e João Adelino Faria e Manuel Luís Goucha e tantos outros, todos eles como que sonhando-se no papel da princesa, foi tão pindérica como teria sido no passado, se não mesmo mais. Por mim, tomei a decisão certa e vi na Sky. A bimbalhice disfarça muito melhor quando é em inglês – e na Sky sempre são menores os riscos de apanhar o Cláudio Ramos vestido de noiva. Isso, sim, são riscos a que um homem não deve submeter-se de ânimo leve.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 14 de Maio de 2011
(imagem: © www.dailymail.co.uk)


