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Ela apontou para a própria barriga flácida, o saco de carne aposentado de seu ofício como mula da felicidade alheia.
Éguas parideiras de pelagem curta que eram montadas pelas costas e depois pariam em pé, deixando um rastro de sangue e vísceras na palha do curral, pouco antes de serem vendidas. Que eram, de merecimento, tão valiosas, mas tinham os olhos mais tristes entre todos os animais que morriam.
Naquele exato momento, enquanto Rose tocava a campainha de uma daquelas mansões, percebeu que estava muito longe de casa, tão longe que talvez não soubesse mais voltar.
Se conseguisse dar nome aos próprios sentimentos, poderia ter chorado. Mas ainda não era essa pessoa. Ainda nem sabia sofrer.
Começou a desconfiar que o casal sofria de um mal incurável, uma espécie de solidão que se manifestava especialmente quando estavam juntos.
Damiana entendeu, do seu próprio jeito, que o medo da solidão podia tirar a coragem das pessoas.
tinham conhecimento do projeto do livro, mas também sentiam que havia algo errado com a filha, um maremoto desconhecido que parecia transformá-la em silêncio.
Achava possível resistir ao que o corpo pedia, mesmo quando acordava no meio da noite assaltada por uma ardência entre as pernas, e se abster do amor era uma forma confortável de proteção.
Sentia que ele transpirava malícia e ganância, que era mentiroso e falso como moedas de chocolate embrulhadas em papel dourado, mas não acreditava que fosse perigoso de verdade.
Enquanto se rendia, e se rendendo ia caindo, pensou que estava perdida. Joaquim tinha cruzado a fronteira das pessoas que de repente se tornavam impossíveis de ignorar. Agora colonizaria todos os seus pensamentos e ocuparia espaços por tanto tempo inabitados. Era uma sensação deliciosa, mas também terrível, porque fazia parecer que, ao contrário do que imaginava, não precisava ser sempre tão sozinha.
O primeiro foi Mateus, o ex-bailarino bissexual que estava explorando o desejo por mulheres com curiosidade e energia. Gabriela amava o corpo dele, que parecia esculpido em mármore, mas o fogo acabou depois de um ménage malsucedido com um amigo em comum. O segundo dessa safra particularmente frutífera se chamava Tiago, trabalhava com ciência da computação, acreditava em ets e era lindo mas não sabia disso. Depois, vieram João e Pedro, dois barbudos com olhos de caramujo que fumavam maconha demais e gostavam de ouvir Belchior. Eram tão parecidos que Gabriela precisou confirmar, após algumas
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Mesmo que seu programa preferido fosse ir com ele à feira sábado de manhã e depois fazer o almoço e cochilar no sofá. Mesmo que andasse viciada em dormir abraçando aqueles ombros largos e pontilhados de pintinhas. Ainda não estava de joelhos.
Esquecia seus grandes propósitos, seu motivo para estar nesse país e a investigação de suas raízes. De repente estava satisfeita com o que era possível, e até seus pais perceberam a mudança. Diziam que ela estava leve. Ela que nem sabia que andava com tanto peso nas costas.
Pagaram e foram embora logo depois, atrapalhando-se com os guarda-chuvas ao sair, porque chovia. Para piorar tudo, chovia. No meio da calçada, Lucas tentou dizer alguma coisa, mas só abriu e fechou a boca, como um peixe de aquário. Gabriela, por sua vez, o abraçou rápido, deu as costas e começou a caminhar com tanta força que parecia querer furar a calçada com os pés, espirrando água para todo lado. Chegou no trabalho com as meias enlameadas e desabou na cadeira em um estado quase catatônico.
Gabriela não quis se despedir. Em vez disso, bloqueou Lucas em todas as redes sociais e decidiu que esquecê-lo era o melhor a ser feito. Ela era muito boa nisso.
Ele foi o único a ter um orgasmo. O orgasmo que, dois meses mais tarde, deixou Gabriela chocada com a consequência, porque acabou de fato grávida do próprio desespero.
Esse é o grande problema das obsessões, no entanto. Elas gostam de carne viva e nunca dormem. Nem mesmo quando a gente é feliz.