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Com o tempo se perde o ruído dos dias, torna-se difícil lembrar com precisão como a vida cotidiana soava, qual era nossa ideia de silêncio — qual era o repertório de sons inclusos no ruído branco:
Todo mundo fala sozinho, por exemplo. Isso nunca aparece nos filmes.
Geralmente Carla queria estar onde estava e queria ser quem era. Dizem que isto é felicidade: nunca sentir que seria melhor estar em outro lugar, nunca sentir que seria melhor ser alguém que não você. Outra pessoa. Alguém mais jovem, mais velho. Alguém melhor.
Você quer que eu seja transparente — disse Gonzalo. — Mas não posso ser transparente. Todo mundo tem alguma opacidade.
Carla se distraiu pensando que Gonzalo era como uma ferida no pé; uma ferida incômoda, mas que não a impedia de forma alguma de caminhar, que não a impedia nem mesmo de correr.
A poesia é subversiva porque te expõe, te rasga em pedaços. Você se atreve a desconfiar de si mesmo. Você se atreve a desobedecer. Essa é a ideia, desobedecer a todo mundo. Desobedecer a você mesmo, isso é o mais importante. É crucial. Eu não sei se gosto dos meus poemas, mas sei que se não os tivesse escrito seria mais idiota, mais tolo, mais individualista. Eu os publico porque estão vivos. Não sei se são bons, mas merecem viver. — Muita gente diz que a poesia é inútil. — As pessoas têm medo do inútil. Tudo tem que ter um propósito. Elas odeiam o ócio, são apaixonadas pelo negócio. Têm medo
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— E você não acha que as coisas podem melhorar com o novo governo? — A única esperança é a mesma de sempre: que o povo se levante. Mas o povo está deprimido demais. Seria preciso distribuir antidepressivos nas favelas. Primeiro o Rivotril, depois o fuzil. Não, desculpe, nada a ver. Era só pra rimar.
— E do que o povo precisa, então? — Sei lá. Ioga, kickboxing, poesia, revolução. Educação de verdade, alegria de verdade, jardins, pedicure, ceviche. Ginástica rítmica, esgrima. Muito abacate, quinoa, cochayuyo.25 Pedras afiadas, superpoderes, amuletos. E uns bons tênis. E sobretudo sexo, todos os dias, a cada oito horas, religiosamente, como se toma antibióticos. Mas sexo de qualidade altíssima, superlativa, cósmica. E boa música.
Relê suas primeiras anotações e às vezes discorda de si mesma e adora isso, sempre gostou de mudar de opinião, talvez o que mais goste em seu trabalho seja o momento em que descobre que mudou de opinião.
Lê a quarta capa de Ao farol, que leu aos dezessete anos, em meio a um temporal, e se lembra de ter pensado ou sentido que as frases de Virginia Woolf tinham a capacidade de intensificar a chuva.
Mas era como se falassem línguas diferentes. Gonzalo falava uma língua composta unicamente por frases finais, uma língua que feria, uma língua obscura e mortífera, enquanto Vicente falava uma língua imaculada, de palavras vacilantes e vivas, de frases hesitantes que começavam e continuavam indefinidamente.
Preenche formulários, constrói uma imagem de si mesmo, uma ficção que, assim como todas as ficções na história da humanidade, é baseada em fatos reais.