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Não só não consegui me tornar maldoso como fui incapaz de me tornar qualquer coisa: nem mau nem bom, nem crápula nem puro, nem herói nem inseto.
clareza excessiva da consciência a respeito de sua própria humilhação; vem de perceber que você desceu ao último degrau; de que isso é detestável, mas não pode ser diferente; de que não há saída e de que você nunca vai ser uma pessoa diferente; de que, mesmo que ainda restasse tempo e fé para se transformar em outra coisa, com certeza, você mesmo não ia querer se transformar; porém, se quisesse, ainda assim não faria nada, porque, no fundo, talvez não exista nada em que se transformar.
O que importa mesmo é compreender tudo, ter consciência de tudo, de todas as impossibilidades e muros de pedra; não se conformar com nenhuma dessas impossibilidades e muros de pedra, se para os senhores for nojento se conformar; o que importa é, por meio das combinações lógicas mais inexoráveis, chegar às conclusões mais repugnantes sobre a eterna questão segundo a qual, até desse muro de pedra, parece que você mesmo tem alguma culpa, embora esteja bem claro, mais uma vez, e seja até evidente, que você não é culpado e, por causa disso, rangendo os dentes, mudo e sem forças, você acaba
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Talvez ele queira dizer para não nos conformarmos, mas ao mesma tempo, reconhece a impotência diante das impossibilidades e injustiças.
Não sabe a quem culpar, e não pode culpar nem a si mesmo nem a ninguém sobre as coisas serem como são, mas, ainda assim, não há como ignorar a realidade e a própria impotência diante dela.
Mas não vão me perguntar por que eu mutilava e torturava tanto a mim mesmo? Resposta: porque era maçante demais ficar parado, de braços cruzados; então eu saía por aí fazendo essas extravagâncias.
quem foi que primeiro proclamou que o homem só faz porcarias porque não conhece seus verdadeiros interesses e que, se o esclarecermos, se abrirmos seus olhos para seus interesses verdadeiros e normais, logo ele vai parar de fazer porcarias, logo ele vai passar a fazer coisas boas e nobres, porque, uma vez esclarecido, e compreendendo quais são seus interesses verdadeiros, ele veria no bem justamente o seu próprio lucro, e como se sabe que pessoa nenhuma pode agir de propósito contra seus próprios lucros, conclui-se que ele passaria a fazer o bem, por assim dizer, forçado pela necessidade?9
Então, o que fazer com os milhões de fatos que atestam que as pessoas, de caso pensado, ou seja, com a perfeita compreensão de quais são seus lucros verdadeiros, deixaram isso em segundo plano e se lançaram em outra direção, rumo ao perigo, à incerteza, sem que nada nem ninguém as forçasse a fazer tal coisa, como se elas não quisessem justamente tomar o caminho indicado, e mais nada, e de maneira teimosa, proposital, abriram outro caminho, árduo, absurdo, saíram à procura desse caminho no escuro, quase às cegas? Afinal, isso quer dizer que, de fato, para essas pessoas, a obstinação e a
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será que existe mesmo, para quase todas as pessoas, algo que valha mais do que seus melhores lucros, ou (para respeitar a lógica) será que existe um lucro tão lucrativo (exatamente aquele lucro omitido, do qual falamos há pouco) que possa ser mais importante e mais vantajoso do que todos os demais lucros, e em nome do qual o ser humano, se necessário, esteja disposto a ir contra todas as leis, ou seja, contra a razão, a honra, a tranquilidade, o bem-estar — em suma, contra todas essas coisas belas e úteis, apenas para alcançar esse lucro original, o lucro mais lucrativo, e que, para o ser
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O que seria esse lucro? Algo tão bom que vale a pena ter atitudes até mesmo irracionais para alcançá-lo?
O mínimo que se pode dizer é que, por efeito da civilização, o ser humano se tornou, se não apenas mais sanguinário, pelo menos, com certeza, pior e mais brutalmente sanguinário do que antes. Pois antes ele via no derramamento de sangue uma questão de justiça e, com a consciência tranquila, massacrava quem julgava necessário;
embora às vezes tenha aprendido a ver as coisas de maneira mais clara do que nos tempos bárbaros, ainda está longe de ter se acostumado a agir como a razão e a ciência indicam.
isso acontece justamente porque o ser humano, sempre e em toda parte, quem quer que ele seja, adora agir como bem entende e nem de longe como ordenam a razão e o lucro; e ele pode, muito bem, querer agir contra seu próprio lucro, e às vezes, inclusive, ele deve, inapelavelmente (mas isso já é ideia minha), fazer isso. Sua escolha livre, própria, sem constrangimentos, seu capricho pessoal, mesmo o mais desarvorado, sua fantasia, por vezes exasperada até as raias da loucura — é isso que importa e é esse o tal lucro omitido,
O homem só precisa de uma vontade independente, custe o que custar essa independência, e não importa para onde ela possa acabar levando.
O homem pode tomar atitudes irracionais para saciar o próprio egoísmo e realizar suas vontades, independente de prejudicar o próximo ou a si mesmo. Mesmo conhecendo a razão e seus benefícios, continua tomando decisões impulsivamente.
Nunca pensei dessa forma, afinal, sempre lemos nos livros que vivemos em uma época em que somos movidos pela razão, e somente através dela podemos encontrar a verdade. Os livros só falam a parte bela, e esquecem que os seres humanos podem ser repugnantes.
razão, no fim das contas, é uma coisa boa, isso nem se discute, mas a razão é só a razão e satisfaz apenas a capacidade humana de raciocinar, ao passo que a vontade é a manifestação de toda a vida,
A razão só sabe o que conseguiu descobrir (fora isso, convenhamos, não vai saber mais nada; pode não ser um consolo, mas por que não declarar isso abertamente?), ao passo que a natureza humana age como um todo, com tudo que há nela, consciente ou inconsciente e, embora minta, ela está viva.
Acredito nisso, respondo por isso, porque, afinal, toda a questão humana, ao que parece, se resume, na verdade, apenas em que o ser humano precisa provar para si mesmo, a todo instante, que ele é um ser humano, e não o pedal de um órgão!
Nas memórias de qualquer pessoa, existem coisas que ela não revela para todo mundo, só para os amigos. Existem memórias que ela não revela nem para os amigos, mas só para si, e mesmo assim em segredo. No entanto, existem também, afinal, memórias que a pessoa teme revelar até para si, e qualquer pessoa respeitável acumula um bocado de coisas do tipo.
será que é possível ser inteiramente sincero, pelo menos consigo mesmo, e não ter receio de toda a verdade?
Além da leitura, não havia para onde ir — ou seja, na ocasião, não havia à minha volta nada que eu pudesse respeitar e que me atraísse.
Deixem-nos sozinhos, sem livros, e na mesma hora vamos ficar confusos, vamos nos perder — não saberemos a que aderir, o que apoiar, o que amar, o que odiar, o que respeitar nem o que desprezar. Para nós, é opressivo até ser gente — gente com corpo e sangue próprios, de verdade; temos vergonha disso, consideramos isso uma humilhação e fazemos de tudo para nos tornarmos uns tais de seres humanos em geral, que nunca existiram.