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Mas amava ela a alguém? Ao cavaleiro? Talvez! Úrsula sentia uma vaga necessidade de ser amada, de amar mesmo; mas em quem empregar esse amor, que devia ser puro como a luz do dia, ardente como o fogo de madeira resinosa?! Em quem?! Não o sabia ainda.
O trecho a seguir enuncia pela primeira vez em português e em primeira pessoa a violência da captura, o horror da travessia atlântica no navio negreiro e a transformação da condição de pessoa a escravizado. Trata-se de uma enunciação histórica sem paralelo no século xix, que, inclusive, empresta à obra romântica um acento realista.
Úrsula se apaixona por Tancredo quando este ainda se encontrava desorientado e frágil — portanto, sem demonstrar força e domínio da situação, características com as quais a masculinidade branca hegemônica era composta nos textos.
Se uma mulher brasileira escrever e publicar no século xix já era um ato político,3 imaginem uma mulher, negra, escrever e publicar contra a escravidão, em umas das províncias mais escravistas do Brasil.
No entanto, deve ser acrescentada a essa lista a heroína negra da abolição, Maria Firmina dos Reis, que, através da literatura, lutou a vida inteira contra o regime escravista.
Entretanto, a historiografia mostrou e tem mostrado que escravizados, homens e mulheres de pele negra, lutaram bastante para ser livres no Brasil. De diversas formas: com quilombos, fugas, lutas individuais e coletivas, compra de cartas de alforria. Assim, eles foram tecendo ao longo de quase quatrocentos anos de escravidão a liberdade que sonhavam.
O fato de seu romance Úrsula posicionar-se contra a escravidão em um período no qual o sistema escravista era tido como normal e legítimo daria com certeza o adjetivo “extraordinária” à autora.
No entanto, apesar de ter o “instinto de nacionalidade”13 como todos os românticos, a autora subverte o conceito, pois é para o continente africano que ela constrói uma ideia de pátria e nação.
A autora inaugura, dessa forma, outro olhar sobre o continente, que não o de barbárie e selvageria, já que a ideia de uma África como pátria transforma o continente inteiro em uma só unidade e o qualifica como lugar civilizado. Para ela, bárbaros eram aqueles que haviam transformado outros semelhantes em escravizados,
A ideia de Maria Firmina sobre o que seria a barbárie vai contra muito do que estava disseminado no mundo ocidental e contra a narrativa de evolução da humanidade que compreendia os povos das Américas e da África como inferiores, bárbaros e selvagens.
A autora, portanto, constrói a imagem do escravizado em outra perspectiva, visto que o cativo firminiano tem individualidade e é colocado em pé de igualdade com os personagens brancos. Não é vítima da escravidão, passivo diante da sociedade escravocrata.
mas falar de Maria Firmina dos Reis é colocá-la onde a autora merece: como uma das mãos negras femininas que ajudaram a edificar a abolição no país.