More on this book
Community
Kindle Notes & Highlights
É fácil renunciar quando se tem muito, pensou.
O pior era que não podia tirar a dor de Gaspar. As únicas dores que podia tirar eram as que ele mesmo causava.
As flores te deixam triste? — Sim. — Nós dois estamos tristes. Vem ver o sol.
Então encontrou o primeiro garoto. Estava em uma jaula de animais, certamente trazida do zoológico vizinho.
Tinha a perna esquerda amarrada às costas, numa posição que havia quebrado seu quadril. Como era muito novo (um ano?, difícil saber pela sujeira), certamente havia sido fácil fraturá-lo. Seu pescoço também já estava torcido, pela posição do pé, e, quando Juan aproximou a lanterna para vê-lo melhor, reagiu como um animal, com a boca aberta e um grunhido; sua língua havia sido cortada em dois e agora era bífida. Em volta dele, dentro da jaula, estavam os restos de sua comida: esqueletos de gatos e alguns pequenos ossos humanos.
Era uma história sobre a ilha de Chiloé, no sul do Chile. Lá havia uma seita, a Brujería. Tinham outras duas sedes, uma em Buenos Aires e outra em Santiago.
Eles têm um guardião da caverna onde fica a Brujería, se chama imbunche. É uma criança que tem entre seis meses e um ano que os bruxos sequestram e deformam, quebram as pernas dela, as mãos e os pés. Depois de quebrá-la toda, giram a sua cabeça como um torniquete até ela ficar virada para as costas, como no Exorcista. No final fazem um corte muito profundo nas costas, abaixo da escápula, e enfiam o braço direito nesse buraco. Quando a ferida sara e o braço está dentro, o imbunche está completo. Eles o alimentam com leite humano e, mais tarde, quando está pronto, com carne humana também. Deve
...more
Trocaram de lugar, pensou. Está parecendo o pai. Tem a mesma maneira de olhar.
Eu sou seu pai porque estou doente.
Saudável, não sei o que teria acontecido.
Minha mãe não é o único membro da Ordem que procura um médium ou tenta invocar a Escuridão por conta própria, mas, até onde sei, é a única que usa esse método.
Reconheci a cara do que gritava: era procurado no povoado com um retrato falado, havia cartazes com aquele desenho tosco por todas as partes, na mercearia, nos postes de luz, na delegacia. Alguém o queria de volta, alguém o amava. O pano que cobria seus olhos estava tão sujo que tinha vermes.
A luminosidade prateada, reflexo da lua em sua pele suada, era tomada pouco a pouco por uma escuridão que vinha dela, que lhe escapava pelos poros. As mulheres e os sacerdotes gritavam: os tambores sufocavam a noite, e George Mathers viu uma língua bífida pender da boca de Olanna e viu cada borboleta noturna que se aproximava cair morta assim que a luz negra a tocava.
Christopher Mathers sabia que, para construir uma crença, é necessária uma promessa imensurável.
O que a Escuridão dita para a Ordem são instruções sobre como obter a sobrevivência da consciência.
O que nós acreditamos e o que a Escuridão — e, portanto, a Ordem — oferecem é a possibilidade de manter para sempre a existência neste plano.
Entendo e sempre entendi que a Ordem tem que chegar aos extremos para obter conhecimento e que, em muitos casos, isso implica esquecer o afeto ou abraçar a loucura, implica crueldades difíceis de entender, mesmo para os Iniciados. Mas, quando tive que alimentar os enjaulados, soube que aquele era o meu limite ou um dos meus limites.
O que acontece é real, mas a vida também é.
Um culto que não oferece benefícios para sempre, ou ao menos durante um tempo extraordinariamente longo, não edifica uma fé.
Para ela, o amor é uma impureza. Eu, ao contrário, tive tão pouco amor que me parece uma joia delicada e tenho pavor de perdê-la.
Juan se identificava com Eddie e com Encarnación, com o jovem escocês, com Olanna: essa era sua linhagem, a dos médiuns usados contra sua vontade.
Betty desceu até a praia com sua filha e sentou-a ao lado de Gaspar. Eles gostavam de brincar juntos. Gaspar não parecia notar que Adela não tinha um braço. Obviamente, Gaspar não sabia que Juan o havia cortado, certamente contra a vontade da bebê e a de sua mãe. Não Juan, claro. A Escuridão. A menina tinha sido escolhida. Betty tinha ignorado minha ordem de não sair da casa durante os dias do Cerimonial, e a Escuridão tinha visto a bebê, Adela, tão pequena, mais nova e mais miúda que Gaspar. A mutilação, em um corpo tão pequeno, era impressionante.
e a Ordem a queria de volta.
Tinha corrido pela selva com a bebê, fugindo.
É claro que é bem-vinda, disseram. É da família, é uma Bradford.
Adela, o milagre negro.
O medo muda, se redimensiona. Não quero me acostumar a isso. À noite não sonho com ossos, mas sim com uma enorme escuridão sobre a lagoa, uma tempestade grossa e carregada de granizo.
Guillermo Triuso publicada em Panorama dois meses depois do desaparecimento (Revista Panorama, no 139, “O desaparecimento de Adela”, 27 de novembro de 1986).
A família é um país dentro do país.
Em algum momento tinha sido bom ser viado?
Quem dera as coisas pudessem ser sempre iguais, quem dera esta casa, que é como um porto seguro na tempestade, ficasse de pé para sempre, e sempre para nós, sem agregados, sem tempo, sem futuro.
Para ele, o álcool afrouxava o que estava amarrado, uma corrente bem justa da qual estava procurando o cadeado há anos.
A sensação era tão vívida, tão óbvia que não restaram dúvidas. Era uma questão de lembrar.
Em lembrar inclusive o que não tinha presenciado.

