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by
Anne Rice
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April 22 - May 5, 2025
Sou o vampiro Lestat. Sou imortal. Mais ou menos.
Eu captava imagens dos pensamentos dos músicos que me diziam como era a aparência deles, o que viam quando olhavam um para o outro e para os espelhos.
Quanto à minha força, era três vezes maior do que antes. Eu podia pular da rua até o alto de um prédio de quatro andares. Podia arrancar grades de ferro de janelas. Podia partir ao meio uma moeda de cobre. Podia ouvir vozes e pensamentos humanos, quando queria, a quarteirões de distância.
Claro que o odiava pelas mentiras que contara sobre mim. Mas o amor era muito maior que o ódio. Ele havia compartilhado comigo os anos sombrios e românticos do século XIX, fora meu companheiro como nenhum outro mortal já havia sido.
eu nascera com um temperamento irrequieto – o sonhador, o rebelde, o inconformado. Eu não ficava ao pé da fogueira para falar de velhas batalhas e dos tempos do Rei Sol. A história não tinha nenhum sentido para mim.
nesse mundo sombrio e antiquado, eu me tornara um caçador. Trazia o faisão, o cervo e a truta dos arroios da montanha – o que fosse necessário e pudesse ser pego – para alimentar a família. A caça se tornara minha vida nessa época – e uma vida que eu não compartilhava com mais ninguém –, e foi muito bom que eu a tivesse escolhido, porque aqueles foram anos em que, de fato, poderíamos ter morrido de fome.
Eu adorei a capela e os hinos, a biblioteca com seus milhares de livros velhos, os sinos que marcavam a passagem do dia, os rituais sempre repetidos. Adorei a limpeza do lugar, o espantoso fato irresistível de todas as coisas serem conservadas em bom estado, de o trabalho jamais ter fim na grande casa e nos jardins. Quando me corrigiam, o que não ocorria com frequência, sentia uma intensa felicidade, pois, pela primeira vez em minha vida, alguém estava tentando me transformar numa boa pessoa, em alguém que conseguisse aprender as coisas.
Queria ser encerrado para sempre com pessoas que acreditavam que eu poderia ser bom, se eu assim o quisesse.
Gostavam de mim ali. O que era bastante inusitado. Eu não tornava ali ninguém infeliz ou zangado.
Foi apenas porque eu havia sofrido daquela maneira, hora após hora, indo e voltando até o círculo do inferno. Eles não conheciam o círculo do inferno. E me senti calma, por completo. Nesse acontecimento comum, nesse ato simples de dar à luz, compreendi o sentido da solidão absoluta.
Quando matei os lobos, me senti como se fosse uma pessoa diferente. E agora não sei quem está aqui com você... seu filho Lestat ou aquele outro homem, o matador.
Você é mais forte do que todos aqui, esta é a sua tragédia.
Ele estendeu a mão, pôs o braço em torno de minha nuca e me beijou. Quase derrubamos a mesa de tão alegremente bêbados que estávamos.
Durante todos esses anos vivi entre aqueles que não criam coisa alguma e não mudam nada – eu disse. – Atores e músicos... para mim, eles são santos.
Mas é apenas isso – eu disse –, nós não fazemos nenhuma descoberta na hora da morte! Apenas paramos! Passamos para a não existência sem jamais saber de coisa alguma. Eu via o universo, tinha uma visão do sol, dos planetas, das estrelas, da noite negra continuando para sempre. E comecei a rir. – Você percebe isso? Jamais saberemos por que diabos tudo isso aconteceu, nem mesmo quando acaba!
Nós vamos morrer e nem vamos saber. Jamais saberemos, e toda essa falta de sentido vai continuar para sempre. E já não seremos mais testemunhas disso. Nem sequer temos o pequeno poder de dar sentido a isso em nossas mentes. Nós apenas vamos desaparecer, mortos, mortos, mortos, sem nem ao menos saber.
As bruxas queimadas nas estacas jamais seriam vingadas. Ninguém jamais nos esclareceria coisa alguma.
Olhava para tudo, vendo a mesma coisa por trás de cada configuração de cores, luz e sombras: a morte. Só que não era a morte como eu pensava nela antes; era a morte da maneira como a via agora. Morte real, morte total, inevitável, irreversível, que não esclarecia coisa alguma.
Mas nada que fosse natural me parecia belo agora. A mera visão de uma enorme árvore solitária na campina me fazia tremer e chorar. Que o pomar se enchesse de música. E deixem-me contar-lhes um pequeno segredo. Nunca passou, realmente.
Não existe mais nada... a não ser... – Eu sei. – Ele sorriu. – A não ser a falta de sentido. A morte. – É – eu disse. – Tudo que você pode fazer é dar sentido à sua vida, torná-la boa...
Há uma luz em você que quase cega. Mas em mim só existem trevas. Às vezes acho que se parecem com as trevas que o contagiaram naquela noite na estalagem, quando você começou a chorar e tremer. Estava tão desamparado, tão despreparado para ela. Tentei afastar aquelas trevas de você porque eu preciso de sua luz. Preciso dela desesperadamente, mas você não precisa das trevas.
A beleza não era a traição que ele imaginava ser, era mais uma terra desconhecida na qual se poderiam cometer mil erros fatais, um paraíso selvagem e indiferente sem indicações claras do bem e do mal. Apesar de todos os refinamentos da civilização que conspiraram para produzir a arte – a estonteante perfeição do
quarteto de cordas ou o exuberante esplendor das telas de Fragonard –, a beleza era selvagem. Era tão perigosa e sem lei quanto a terra fora milênios antes que o homem tivesse elaborado um único pensamento coerente ou escrevesse códigos de conduta em tábuas de argila. A beleza era um Jardim Selvagem.
O bem e o mal são conceitos criados pelo homem. E o homem é melhor, de fato, do que o Jardim Selvagem.
Mas talvez bem no íntimo, Nicki sempre tenha sonhado com uma harmonia entre todas as coisas, que eu sempre soube ser impossível. Nicki não sonhara com a bondade, mas sim com a justiça.
O que eu pensava que era, um parceiro justo dos juízes e verdugos de Paris que abatiam os pobres por crimes que os ricos cometiam todos os dias?
– E quanto tempo você acha que vai suportar, sentindo, tocando e provando, se não houver amor? Se não houver alguém com você?
E se eles estiverem certos – ela disse – e nós não pertencermos à Casa de Deus? – Conversa fiada, tolices. Deus não está na Casa de Deus.
Esse demônio não foi um iniciado, nem aqui nem em lugar algum; ele não pediu para ser acolhido. Não fez os votos a Satã. Não entregou sua alma no leito da morte e, na verdade, não morreu! Sua voz ficou mais alta, mais aguda. – Ele não foi enterrado! Não se levantou da sepultura como um Filho das Trevas! Ao contrário, ele ousa vagar pelo mundo com a falsa aparência de ser humano! E em Paris faz negócios como um homem mortal!
Eu estava aqui – ela disse –, nesta congregação, quando Magnus roubou nossos segredos, aquele astuto, o alquimista, Magnus... quando bebeu o sangue que lhe daria a vida eterna, de um modo que o Mundo das Trevas jamais havia testemunhado antes. E agora três séculos se passaram e ele concedeu seu dom das trevas puro e não diluído a você, minha linda criança!
Eu lhes digo, vocês vagueiam por esta terra assim como todas as coisas más, pela vontade de Deus, para fazer os mortais sofrerem por sua Divina Glória. E pela vontade de Deus podem ser destruídos se blasfemarem, e podem ser atirados nos caldeirões do inferno agora, pois são almas condenadas e sua imortalidade só lhes é concedida à custa de sofrimento e tormento.
Você não vê? – eu disse em tom suave. – É uma nova era. Ela precisa de um novo mal. E eu sou esse novo mal. – Fiz uma pausa, observando-o. – Eu sou o vampiro deste tempo.
O vampiro que abandona os seus pares para habitar entre os seres humanos enfrenta um inferno medonho muito antes de a loucura chegar. Ele passa a amar os mortais de uma maneira irresistível! Ele passa a compreender todas as coisas através do amor.
Com o passar do tempo, ele chega a conhecer os mortais como eles jamais podem conhecer a si mesmos – ela continuou, destemida, levantando as sobrancelhas –, e por fim chega o momento em que ele não pode suportar o ato de tirar a vida, ou de causar sofrimento, e nada a não ser a loucura ou sua própria morte aliviará sua dor. Foi este o destino dos antigos, tal como Magnus me descreveu; Magnus, que sofreu todas as aflições no final.
Amar mortais? Vocês levaram trezentos anos! – Lancei um olhar penetrante para Gabrielle. – Desde as primeiras noites em que os segurei perto de mim, eu os amei. Bebendo sua vida de uma só vez, sua morte, eu os amo. Poderoso Deus, não é esta a própria essência do Dom das Trevas?
Você irá compreender todas as coisas com o amor – a velha rainha prosseguiu –, quando não passa de um ser maligno e odioso. Esta é sua imortalidade, criança. Um entendimento cada vez mais profundo do amor.
Meu Nicolas, meu amor. A eternidade espera. Todos os grandes e esplêndidos prazeres de estar morto.
Você me deseja ardentemente e eu a você, e só nós, em todo esse reino, somos dignos um do outro. Você sabe disso?
Meu Deus, isto é amor. Isto é desejo. Todas as minhas aventuras amorosas do passado nada mais eram do que uma sombra daquilo.
Quem pode nos amar, a você e a mim, com a mesma intensidade que podemos amar um ao outro, ele sussurrou e me pareceu que, de fato, seus lábios se mexeram.
Quero saber, por exemplo, por que a beleza existe – ela disse –, por que a natureza continua a inventá-la, e qual é a associação entre a vida de uma árvore e sua beleza, e o que relaciona a mera existência de um mar ou de uma tempestade de relâmpagos com os sentimentos que essas coisas inspiram em nós? Se Deus não existe, se essas coisas não estão unidas em um sistema metafórico, então por que conservam para nós tamanho poder simbólico? Lestat chama isto de Jardim Selvagem, mas para mim não basta. E devo confessar que isto, esta curiosidade obsessiva, ou como quer que você chame, me afasta de
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Eu sempre fui um rebelde – eu disse. – Você tem sido um escravo de tudo que o solicita.
Eu queria manifestar, de algum modo, minha monstruosidade na humanidade para juntar-me de novo a meus companheiros humanos. Seria melhor eles fugirem de mim do que não me verem. Seria melhor que soubessem que sou uma coisa monstruosa do que eu me mover furtivamente pelo mundo sem ser reconhecido por aqueles sobre os quais caio como ave de rapina.
Satânico é apenas o nome que eles dão para o comportamento daqueles que tentam perturbar a maneira sistemática com a qual desejam viver.
Armand parecia um deus saído de uma tela de Caravaggio, Gabrielle, um arcanjo de mármore do pórtico de uma igreja. Mas aquela figura acima de mim era a de um homem imortal.
Ser ateu é provavelmente o primeiro passo para a inocência – ele disse –, libertar-se da sensação de pecado e de subordinação, o falso pesar por coisas destinadas a se perder. – Quer dizer que com inocência você se refere não à ausência de experiência, mas sim a uma ausência de ilusões. – Uma ausência da necessidade de ilusões – ele disse. – Um amor e respeito por aquilo que é certo aos seus olhos.
eu só sabia o que todos os homens sabem, que o ciclo do inverno e da primavera, de todas as coisas que crescem, contém dentro de si alguma verdade sublime que restaura sem precisar de mito ou linguagem.
Eu tinha de encontrar os velhos deuses porque não conseguia suportar ficar sozinho entre os homens. Todo o horror disso pesava em mim, e embora eu matasse apenas os assassinos, os malfeitores, minha consciência estava bem sintonizada para a autoilusão. Eu não podia suportar compreender que eu, Marius, que conhecera e desfrutara de tanto amor na vida, fosse o implacável portador da morte.
A cristandade surgiu das cinzas do paganismo, apenas para levar adiante o antigo culto em nova forma. Talvez uma nova religião surja agora. Talvez, sem ela, o homem sucumba ao ceticismo e ao egoísmo, porque realmente precisa de seus deuses.
a vida não precisa de nós. Eu jamais tive um verdadeiro propósito. Nós não temos lugar.