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Perder amores é escurecer por dentro, uma memória do corpo que o entardecer evoca quando tinge o céu de vermelho.
Amor de livro barato, quem não quer? Amor que não se vê na vida nem das putas, nem na das beatas e muito menos na vidinha de quem pensa ter que escolher entre uma coisa ou outra.
Mas não é só de tempo que um bom cardápio de ódios precisa para inspirar grandes estratégias.
Se achava dona da palavra do Senhor por saber de cor a palavra escrita por homens. Homens criados por Deus, propositalmente sujeitos a ciscos e traves nos olhos.
Se Deus sabe o que faz, e sempre faz o que quer, para que servem a prece e o fervor de quem suplica? Será um capricho nos querer ajoelhados?
Ele foi ficando lento e calado, foi se envenenando com as raivas contidas, as palavras apodrecendo dentro dele, as paredes sem ouvidos devolvendo em ecos ampliados a dor de não ser amado.
Ia querer ver a filha sacudir a poeira. Quem deita demais o sofrimento monta.
A certeza do que tinha visto começou a se diluir. O transparente virou barro. O amor não é incondicional coisa nenhuma, tem suas fragilidades de matéria orgânica.
Afirmam que é destino da intimidade abrir passagem para a indelicadeza, que a disponibilidade afasta o desejo e a convivência mina o afeto, como se essas fossem leis imutáveis.
Não é bom todo dia, mas é bom toda a vida.
É preciso uma coincidência qualquer para que o amor se instale.
Aprendeu que a verdade não tem dono, que é duro demais existir e que ninguém precisa ajudar ninguém a sofrer.
Não despistou, chorou abraçada à filha, sabendo da saudade que enfrentaria, sentiu que não ia poder proteger Dalva de mais nada e isso, para uma mãe, é uma espécie de adoecimento.
Mas, se a bondade condenava sincera de um lado, a maldade acolhia o espetáculo.
Desistir de Deus é muita solidão. Queria encontrar palavras milagrosas, resgatar a amizade entre os dois, mas diante do desespero de perder um filho as palavras são letras juntas, não podem carregar um sentido que a própria vida não consegue esclarecer.
É invenção nossa pensar que Deus pode tudo, minha filha. Peça a Deus para voar, nem Ele pode fazer isso, ia ter que fazer você ganhar asas, virar passarinho e aí não seria mais você. Nem seria Deus, seria a fada-madrinha, que faz ratinhos virarem cavalos e abóboras, carruagens.
O que estava acontecendo naquele momento ficou para trás, e o passado ocupou o lugar de tudo o que importava naquele instante.
A liberdade é uma conversa fiada, é palavra de efeito, sempre no meio de uma frase para impressionar os desatentos, no fundo estamos presos à incapacidade de ser outra coisa diferente do que somos, do que a história da gente tramou.
Você acha que o perdão pode apagar o medo e a solidão que Dalva sentiu, fazer ela desver o que viu? O perdão não muda o passado, nunca se esqueça disso, meu filho. O passado é eterno.
Nenhum castigo seria maior do que esse.
A morte põe um olho no passado e outro no futuro e deixa a gente cego na hora, no encontro do que foi e do que será, na tortura do que poderia ter sido. Impõe o desespero do definitivo, trava os movimentos. Embrulha o estômago indigesta. Faz frio nos ossos. A morte é vida intensa demais para quem fica.
maior maldade de todos os tempos, a mais cruel, foi inventar que o sofrimento está para o bem assim como o prazer está para o mal.
A tristeza escraviza, nos faz dependentes de que alguma coisa aconteça, nos obriga a esperar por um olhar, um movimento, uma coragem, um amanhecer qualquer que limpe nossas águas e nos devolva a liberdade, lugar onde a alegria encontra espaço para existir.