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Se parar essa fonte que em cada um de nós existe é horrível. A fonte é de mistérios, mistérios escondidos e se parar é porque vem a morte.
Cada um de nós é o segredo da vida e um é o outro e outro é um.
A vida real é um sonho, só que de olhos abertos (que veem tudo destorcido). A vida real entra em nós em câmara lenta, inclusive o raciocínio o mais rigoroso – é sonho.
O quotidiano contém em si o abuso do quotidiano: o quotidiano tem a tragédia do tédio da repetição. Mas há uma escapatória: é que a grande realidade é fora de série, como um sonho nas entranhas do dia.
Que estou eu dizendo! É ou não é verdade. Eu minto tanto que escrevo. Eu minto tanto que vivo. Eu minto tanto que ando à procura da verdade de mim. Tu serás a minha verdade. Quero a veraz semente de ti. Se eu conseguir atravessar o denso bosque de enganos. Sou um quiproquó em labirinto feito de fios sangrentos de nervos.
Descobri que eu preciso não saber o que penso – se eu ficar consciente do que penso, passo a não poder mais pensar, passo a só me ver pensar. Quando digo “pensar” refiro-me ao modo como sonho as palavras. Mas pensamento tem que ser um sentir.
Não existe realidade em si mesma. O que há é ver a verdade através do sonho. A vida real é apenas simbólica: ela se refere a alguma outra coisa.
Para começo de conversa, afianço que só se vive, vida mesmo, quando se aprende que até a mentira é verdade.
A realidade não me surpreende. Mas não é verdade; de repente tenho uma tal fome de “coisa acontecer mesmo” que mordo num grito a realidade com os dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi. E por muito tempo, de novo, prescindo da realidade real e me aconchego em viver da imaginação.
A coisa é a materialização da aérea energia. Eu sou um objeto que o tempo e a energia reuniram no espaço. As leis da física regem meu espírito e reúnem em bloco visível o meu corpo de carne.
Quando eu vejo, a coisa passa a existir. Eu vejo a coisa na coisa. Transmutação. Estou esculpindo com os olhos o que vejo. A coisa propriamente dita é imaterial. O que se chama de “coisa” é a condensação sólida e visível de uma parte de sua aura. A aura da coisa é diferente da aura da pessoa. A aura desta flui e reflui, se omite e se apresenta, se adoça ou se encoleriza em púrpura, explode e se implode. Enquanto a aura da coisa é igual a si mesma o tempo todo. A aura qualifica as coisas. E a nós também. E aos animais que ganham um nome de raça e espécie. Mas a minha aura estremece fúlgida ao
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A aura é a seiva da coisa. Emanações fluídicas me cegam ofuscantes a visão. Tremo trêmula. Tremulo tremida. Há algo de esquálido no ar. Aspiro-o sôfrega. Quero impregnar-me toda com as físicas do que existe em matéria.
Pergunto-te em que reino estiveste de noite. E a resposta é: estive no reino do que é livre, respirei a magna solidão do escuro e debrucei-me à beira da lua. Noite alta fazia tal silêncio. Igual ao silêncio de um objeto pousado em cima de uma mesa: silêncio asséptico de “a coisa”. Também existe grande silêncio no som de uma flauta: esta desenrola lonjuras de espaços ocos de negro silêncio até o fim do tempo.
Entendo as belas mulheres árabes que têm a sabedoria de esconder nariz e boca com um véu ou um crepe branco. Ou roxo. Assim ficam de fora apenas os olhos que refletem outros objetos. O olhar ganha então um tão terrível mistério que parece um vórtice de abismo. Uso batom escarlate nos meus lábios: isto é a minha provocação. Tenho sobrancelhas que perguntam sem parar mas não insistem, são delicadas.
Minha estupidez essencial no entanto quer fremir de luz, quer se nimbar de espírito. Minha pesadez precisa da aventura da adivinhação.
Eu me abri e você de mim nasceu. Um dia eu me abri e você nasceu para você mesmo. Quanto ouro correu. E quanto rico sangue se derramou. Mas valeu a pena: és pérola de meu coração que tem forma de sino de pura prata. Eu me esvaí. E tu nasceste. E me apaguei para que tu tivesses a liberdade de um deus. És pagão mas tens a bênção da mãe.
Cada minuto que vem é um milagre que não se repete.
“cristais que se quebram com musical fragor de desastre”.
Peguei a alegria e fiz dela como cristal brilhíssimo no ar. A alegria é um cristal. Nada precisa ter forma. Mas a coisa precisa estritamente dela para existir.
Os brilhantes são pequenas alegrias em chuveiro de risos de crianças.
O homem se senta. Por quê? O sentar-se é algo adquirido lentamente por intermédio do processo através dos milênios? Ou faz parte da natureza humana? Assim como faz parte da natureza do pássaro voar? Deitar-se é diferente: menos os bichos de penas, todo animal se deita.
Mas uma coisa eu tenho certeza, esse nada é o melhor personagem de um romance. Nesse vácuo do nada inserem-se fatos e coisas.
Um homem imaginou Deus e fez uma cadeira, nessa cadeira deve estar um pouco da energia desse homem. Tal é o espírito das coisas feitas, coisas vividas.
Tenho que me querer para dar alguma coisa a mim. Tenho que valer alguma coisa? Oh protegei-me de mim mesma, que me persigo. Valho qualquer coisa em relação aos outros – mas em relação a mim, sou nada.
Fui trêmula ao encontro de mim – e achei uma tola mulher que se debate dentro das paredes de existir. Rompo as comportas e me crio nova. Aí então eu posso me encontrar com eu, em pé de igualdade.
Ela vive de soslaio.
Ela rompeu meu sistema. Ela é minha ancestral e tão pré-história minha que chega a ser inumana, embora escreva com falsa ordem. Ângela é meu afrodisíaco.
um gosto de voz aguda de lobo desejando a presa, eu! eu que aspiro à grande desordem dos desejos vis e as trevas que me possuem no orgasmo apocalíptico de meu existir.
Quero abismo para ti e receber-te como uma rainha de Sabá.
Minha maldade vem do mau acomodamento da alma no corpo. Ela é apertada, falta-lhe espaço interior.
Refugiei-me na doideira porque a razão não me bastava.
E do futuro esperaremos conscientes a falta de sentido, uma liberdade no dizer, no sentir Ah...
O autor que tenha medo da popularidade, senão será derrotado pelo triunfo. Tem uma hora em que se deve tirar retrato de si mesmo. A fome é sempre igual à primeira fome. A carência se renova inteira e vazia.
O que me sustenta é a necessidade. A necessidade me faz criar um futuro. Porque o desejo é algo primitivo, grave e que impulsiona.
Pessoa feliz é quem aceitou a morte.
Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus.
Calar-se é nascer de novo.
Receba em teus braços o meu pecado de pensar.
Mas por que esse desejo e fome de prazer? Porque o prazer é o máximo da veracidade de um ser. É a única luta contra a morte.
Sem falar na teoria da física da antimatéria, tudo tem verso e reverso, tudo tem sim e tem não, tem luz e tem trevas, tem carne e espírito, será nessa antimatéria que cairemos depois de mortos? Como se explica que cada corpo nascido tenha espírito? Acontece sempre o inesperado pois nunca ninguém pôs uma alma na vida que nasce.
Eu não sei como a semente brota, eu não sei por que este céu azul, eu não sei para que esta minha vida porque tudo isso acontece de um modo que a minha mente humana desconhece. Vivo sem explicação possível. Eu que não tenho sinônimo.
Eu quero ter acesso a mim mesmo na hora em que eu quiser como quem abre as portas e entra.
Não quero ser vítima do acaso libertador. Quero eu mesmo ter a chave do mundo e transpô-lo como quem se transpõe da vida para a morte e da morte para a vida.
O que distrai é o ódio espumante. Ódio seco e fustigador.
Ângela fala do frêmito de vida, do “aço demasiado agudo da [sua] lâmina de vida”.