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O rosto da minha mãe, por exemplo, parece-me quase sempre inalterado, o que eu vejo é “minha mãe”, como ela sempre foi, mas por vezes ela vira a cabeça e de repente, como em um choque, eu vejo que hoje ela é uma pessoa de idade, uma mulher próxima dos setenta anos que talvez não tenha mais do que dez anos a viver. Depois ela se vira outra vez, diz qualquer coisa e tudo que eu vejo é mais uma vez “minha mãe”.
Talvez fosse essa a maior dificuldade ao escrever textos autobiográficos, encontrar a relevância do material. Afinal, na vida tudo era relevante, em princípio tudo era igualmente valioso, porque tudo existia, e existia ao mesmo tempo
E escrever era uma atividade tão frágil! Não era difícil escrever bem, mas era difícil fazer com que a escrita se movimentasse, fazer com que desenvolvesse um movimento único e coeso, capaz de revelar e abarcar o mundo ao mesmo tempo.
A última coisa que eu queria era embelezar a linguagem, e numa descrição da realidade, e em especial da realidade que eu tinha pensado em descrever, esse seria um procedimento mentiroso. A beleza é um problema porque sugere uma forma de esperança. A beleza, ou seja, a linguagem literária, o filtro através do qual o mundo é visto, confere esperança à desesperança, valor àquilo que não tem valor, sentido àquilo que não tem sentido. É inevitavelmente assim. A solidão, quando descrita em termos belos, eleva a alma a grandes alturas.
eu comecei com uma página em branco e a vontade de escrever e acabei com aquele romance específico. Nisso há uma crença praticamente cega na intuição, que tanto pode levar a uma poética como a uma ontologia, segundo me parece, uma vez que para mim o romance consiste em uma forma de pensar radicalmente distinta do ensaio, do artigo e da tese, porque no romance a reflexão não é um meio superordenado de chegar à apreensão, mas encontra-se no mesmo nível de todos os demais elementos. O espaço dentro do qual se pensa é tão importante quanto o pensamento. A neve que cai em meio à escuridão lá fora,
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Mas para mim a questão é saber por que mantemos escondido aquilo que mantemos escondido. Que vergonha há nessa queda? Na catástrofe humana total? Viver a catástrofe humana total é terrível, mas falar a respeito? Por que a vergonha e o segredo em relação a isso, que no fundo talvez seja o que existe de mais humano? O que poderia ser tão perigoso a ponto de não podermos discutir em voz alta?
O discurso mais difundido na sociedade é o discurso jornalístico, marcado justamente pela anonimidade, pelo fato de que é impossível traçar a linguagem de um artigo de volta ao jornalista que o escreveu, já que todos os artigos são escritos da mesma forma, com o mesmo estilo, e os jornalistas escrevem sobre os mesmos acontecimentos e buscam esclarecimentos uns com os outros sem que a noção de plágio jamais ocorra a quem quer que seja. Os artigos se parecem uns com os outros, são cópias uns dos outros, tudo porque somos “nós” que os escrevemos. O mesmo vale para manuais de instruções, e também
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Essas duas premissas da literatura — por um lado ter de ser tão individual quanto possível, ou seja, ter de expressar a própria inimitabilidade do eu, e por outro lado ter de se manter dentro dos limites daquilo que é comum, ou seja, também expressar o “nós” — entram em contradição uma com a outra, pois quanto mais único é um eu, mais distante se encontra do “nós”.
A disposição de Knut Hamsun para escrever o obituário de Adolf Hitler, com a frase mais terrível de toda a literatura norueguesa, por mais inimitável que seja, nos deixa cabisbaixos, e a disposição de Peter Handke, talvez um dos três melhores autores vivos no mundo, se não o melhor, para fazer um discurso no enterro de Milošević, e para assim desqualificar-se de uma vez por todas de tudo aquilo que se entende por maioria cultural, são duas expressões inconfundíveis da contradição inata entre o eu único e o nós social, ou seja, da moral que a literatura abriga.
Mas justamente por ter uma associação tão estreita com determinado indivíduo, a voz da grande literatura não diz respeito apenas ao coletivo, como exemplo de uma possibilidade de eu consumida por todos os eus, mas também ao indivíduo único, e portanto a uma pessoa concreta em um lugar concreto em um momento concreto, e essa identidade traz em si mesma uma percepção que não existe em nenhum outro lugar. Por isso a literatura é inestimável. A despeito do quanto possamos estar repletos uns dos outros, a despeito do quanto os nossos eus possam ser coletivos, na verdade estão de fato sozinhos, e
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Uma moral que parte de um todo, que parte do “nós”, é perigosa, e talvez seja até a coisa mais perigosa que existe, porque assumir obrigações para com todos é assumir obrigações para com uma abstração, uma coisa que existe na linguagem ou no mundo dos conceitos, porém não na realidade, onde as pessoas existem apenas como indivíduos.
O eu da literatura assemelha-se ao eu da realidade no sentido de que o que há de único no indivíduo pode ser expresso somente através daquilo que é comum para todos, que no caso da literatura é a linguagem. Todos os eus literários usam as mesmas palavras: a única diferença, aquilo que diferencia um eu literário do outro, é a maneira como as palavras são ordenadas,
Acima de tudo é perder-se a si mesmo, ou perder o próprio ser. Nesse sentido é meio como ler, mas enquanto na leitura a perda de si se dá em função de um eu estranho, que por estar claramente definido como terceiro não representa nenhuma ameaça séria à integridade do eu, a perda do eu durante a escrita é completa, como a neve desaparece na neve, talvez se pudesse dizer, ou como um outro monocromismo qualquer, no qual não existe nenhum ponto privilegiado, nada de primeiro ou segundo plano, nada de parte de cima ou de baixo, apenas a mesma coisa por todos os lados. Esta é a essência do eu
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Mas o que é essa mesma coisa, na qual ele ao mesmo tempo se compõe e se movimenta? É a própria linguagem. O eu surge na linguagem e é a linguagem. Mas a linguagem não é uma linguagem do eu, é uma linguagem de tudo. A identidade do eu literário consiste no fato de que uma palavra é escolhida em vez de outra, mas quão coesa e quão centrada essa identidade parece ser?
Quando escrevemos, perdemos o controle sobre o eu, que se torna imprevisível, e a questão passa a ser se o incontrolável e o imprevisível no próprio eu não seriam no fundo uma representação de sua condição factual, ou pelo menos o mais próximo que podemos chegar de uma representação factual do eu. O que dizemos quando dizemos eu?
pode-se argumentar que o eu literário, independente de apresentar-se desnudo e íntimo, é também social por força da expectativa em relação ao tu que cada eu traz consigo, e que portanto somos o tempo inteiro também um nós.
Você precisa parar de se comparar aos burocratas da própria vida e da vida dos outros. Ou pelo menos não achar que eles é que são interessantes, enquanto você é aborrecido. Foram eles que aborreceram você, e isso está claro.
Eu praticamente nunca tinha um conversa sincera com outras pessoas, porque eu nunca achava que alguém pudesse se interessar por aquilo, e naquele olhar, que era o olhar social, a expectativa do tu construída pelo eu, tudo se tornava desinteressante também para mim, e era assim que a princípio se passava com tudo. Eu era mudo no ambiente social, e uma vez que o social não existe senão em cada indivíduo, eu também era mudo em relação a mim mesmo, no meu âmago. Apenas uma vez eu havia experimentado a inesgotabilidade, e a situação tinha sido quase a mesma: uma outra pessoa genuinamente
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Quando eu tinha dezesseis anos, eu achava que a vida era eterna e que a quantidade de pessoas era inesgotável. Não era tão estranho assim, desde que eu tinha entrado na escola aos sete anos eu estava sempre rodeado por centenas de crianças e adultos, as pessoas eram um recurso renovável, que existia em excesso, mas o que eu não sabia, e mais, o que eu nem ao menos imaginava, era que cada passo que eu dava me definia, que cada pessoa que eu encontrava deixava marcas em mim, e que a vida que eu vivia naquela época, mesmo com todas as intermináveis contingências, seria de fato a minha vida. Que
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Ninguém havia afundado nas profundezas da história! Todos haviam vivido a vida em meio às mesmas coisas que eu e tinham permanecido acessíveis durante todo esse tempo, durante todos esses anos. Estavam a um telefonema de distância. Isso eu não sabia. Eu achava que a vida era vivida somente na minha proximidade imediata; que todos os lugares que eu deixava para trás eram também deixados para trás pela vida.
Quando se olha para os impressionistas, a pergunta é: o que há para vivenciar e ver? Infelizmente a radicalidade dos impressionistas desapareceu por completo da consciência coletiva, hoje restam apenas as belas cores e todas aquelas flores, um destino do qual Proust foi poupado, uma vez que no caso dele as belas cores e flores foram escritas, o que elimina qualquer suspeita de que pudesse ter comprado a beleza ao reproduzir um motivo bonito, que é uma das definições possíveis do kitsch. O fato de que a arte tenha se tornado cerebral a ponto de que tudo que diga respeito aos sentimentos possa
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— quando a situação chega a esse ponto, no qual tudo ou é ficção ou é visto como ficção, o dever do romancista já não pode ser o de escrever mais ficções. Era esse o sentimento que eu tinha; o mundo estava desaparecendo, porque estava sempre em outro lugar, e a minha vida estava desaparecendo, porque também estava sempre em outro lugar. Se eu fosse escrever um romance, teria de ser um romance sobre a realidade como era de fato, vista por um homem feito prisioneiro da realidade por força do corpo, mas não dos pensamentos, que estavam fixos em outra coisa, em um desejo profundo de transcender a
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Os livros de Faulkner, Joyce, Flaubert, Proust e Kafka se desenvolvem na esfera social, o romance é uma forma literária do social, trata de relações interpessoais e de como a realidade que constituímos e que nos rodeia é comunicada. Até mesmo em Dostoiévski é assim; nunca é o mistério ou o sagrado em si mesmo que constitui o cerne do romance, mas as reações que acontecem no entorno. Esse é o único limite real do romance: ele se encontra ligado à vida na esfera social, às pessoas tais como se apresentam umas para as outras, porque no instante em que abandona o humano e se aventura no inumano ou
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Por dentro do III Reich, o livro de memórias de Albert Speer,
É preciso estar alerta quando uma sequência de acontecimentos começa a formar uma narrativa, porque as narrativas pertencem à literatura e não à vida, e também quando os acontecimentos do passado atendem às expectativas do futuro, porque o verdadeiro presente está sempre aberto e ainda desconhece as próprias consequências.
A história de Minha luta é a história de como o livro deixa de ser uma coisa da qual era necessário afastar-se em 1925 para tornar-se uma coisa a ser implementada na vida prática em 1933. Como o próprio Hitler era imutável e manteve as mesmas opiniões em 1925, 1933 e 1943, quem mudou foram as pessoas ao redor dele, e essa mudança talvez seja o elemento mais importante do movimento popular nazista na Alemanha, o fato de que aquilo que antes era errado se tornou certo, de que aquilo que antes era imoral se tornou moral, e o fato de que isso não aconteceu por meio de alterações nas leis ou de
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O que parece tentador nesse trecho de Minha luta é que Hitler diz as coisas sem nenhum tipo de filtro: a propaganda é uma manipulação que muitas vezes apresenta mentiras deslavadas, porém com uma frequência e uma insistência tão grandes que por fim acabam tornando-se verdades. Qualquer um imaginaria que escrever um texto como esse seria o fim da credibilidade de um político e resultaria em sua morte política, mas Hitler se atreve a agir dessa forma por duas razões: em parte porque a propaganda é um meio para atingir um objetivo, e esse objetivo é tão importante e tão justo, tão bom, que todos
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Hitler percebeu que os sentimentos são mais fortes do que os argumentos, e que a força que reside no “nós”, o anseio, o sonho e o desejo de companhia, é infinitamente maior do que a força que reside na consideração por um “eles”. A propaganda é dirigida aos sentimentos, não ao intelecto,
Esse era o anseio. Estar aberto para o mundo, deixar que as coisas acontecessem da maneira como aconteciam e não se deixar levar pelas estruturas predeterminadas que a formação, o trabalho, os filhos e a casa estabeleciam, essa calcificação da vida que girava em torno de instituições:
Essa verdade é a verdade do romance. O romance é um lugar onde o que de outra forma não pode ser pensado de repente pode ser pensado, e onde a realidade em que nos encontramos, que às vezes entra em conflito com a realidade sobre a qual falamos, pode ser sublimada em imagens. O mundo tal como é pode ser descrito pelo romance, ao contrário do mundo tal como deveria ser.
Esse é o pacto: o autor é livre para dizer o que bem entender, porque o autor sabe que o que disser nunca vai, ou pelo menos nunca deveria, ser atribuído ao próprio autor, à sua pessoa.
A relação de amor não é um abrigo, mas o próprio lugar em si. Isso torna o compromisso maior, porque passamos a compartilhar o lugar onde nos mostramos como somos, e de onde ninguém escapa de si mesmo nem do outro. Quando conheci Linda e me apaixonei por ela, tudo desapareceu, somente ela restou. Essa era uma situação de exceção. Quando a situação de exceção cedeu espaço à situação normal, tudo voltou, e o encanto se quebrou. O ilimitado passou a ter limites, a exceção tornou-se a regra, os dias especiais transformaram-se em cotidiano e nós, que nos amávamos, começamos a brigar.
Essa mistura entre o sublime que a literatura pode ser e aquilo que há de mais reles e simplório é característica dos ambientes frequentados por escritores, o que não chega a ser estranho, porque em poucas áreas as pessoas investem tanto para ter um retorno tão parco.
Estávamos no início da adolescência, na idade em que as pessoas começam a perceber que existem outras formas de fazer as coisas e outras maneiras de pensar que vão além da nossa família.
É uma ideia perigosa, uma vez que ninguém a não ser nós mesmos temos responsabilidade por aquilo que fazemos; somos pessoas, não criaturas sujeitas a forças que nos empurram contra a nossa vontade para lá e para cá. Isso caso a essência da humanidade não seja justamente viver sob a influência exercida por outras pessoas, e caso ser uma pessoa boa não seja o mesmo que ser uma pessoa sortuda.