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Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?
É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.
Até agora achar-me era já ter uma ideia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver.
Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo – que sei do resto? o resto não existiu.
O que ainda poderia me salvar seria uma entrega à nova ignorância, isso seria possível. Pois ao mesmo tempo que luto por saber, a minha nova ignorância, que é o esquecimento, tornou-se sagrada.
Escuta, vou ter que falar porque não sei o que fazer de ter vivido. Pior ainda: não quero o que vi. O que vi arrebenta a minha vida diária.
Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira.
A verdade não faz sentido, a grandeza do mundo me encolhe.
É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto. É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse em que país ela vale.
Eu nascera sem missão, minha natureza não me impunha nenhuma; e sempre tive a mão bastante delicada para não me impor um papel. Eu não me impunha um papel mas me organizara para ser compreendida por mim, não suportaria não me encontrar no catálogo. Minha pergunta, se havia, não era: “que sou”, mas “entre quais eu sou”.
eu não precisava do clímax ou da revolução ou de mais do que o pré-amor, que é tão mais feliz que amor. A promessa me bastava? Uma promessa me bastava.
decalcar uma vida provavelmente me dava segurança exatamente por essa vida não ser minha: ela não me era uma responsabilidade. O leve prazer geral – que parece ter sido o tom em que vivo ou vivia – talvez viesse de que o mundo não era eu nem meu: eu podia usufruí-lo. Assim como também aos homens eu não os havia feito meus, e podia então admirá-los e sinceramente amá-los, como se ama sem egoísmos, como se ama a uma ideia. Não sendo meus, eu nunca os torturava.
Eu me preparara para limpar coisas sujas mas lidar com aquela ausência me desnorteava.
Uma cólera inexplicável, mas que me vinha toda natural, me tomara: eu queria matar alguma coisa ali.
A lembrança de minha pobreza em criança, com percevejos, goteiras, baratas e ratos, era de como um meu passado pré-histórico, eu já havia vivido com os primeiros bichos da Terra.
Eu tinha agora uma sensação de irremediável. E já sabia que, embora absurdamente, eu só teria ainda chance de sair dali se encarasse frontal e absurdamente que alguma coisa estava sendo irremediável.
Em mim um sentimento de grande espera havia crescido, e uma resignação surpreendida: é que nesta espera atenta eu reconhecia todas as minhas esperas anteriores, eu reconhecia a atenção de que também antes vivera, a atenção que nunca me abandona e que em última análise talvez seja a coisa mais colada à minha vida – quem sabe aquela atenção era a minha própria vida.
o que eu via era a vida me olhando.
Os regulamentos e as leis, era preciso não esquecê-los, é preciso não esquecer que sem os regulamentos e as leis também não haverá a ordem, era preciso não esquecê-los e defendê-los para me defender. Mas é que eu já não podia mais me amarrar. A primeira ligação já se tinha involuntariamente partido, e eu me despregava da lei, mesmo intuindo que iria entrar no inferno da matéria viva – que espécie de inferno me aguardava? mas eu tinha que ir. Eu tinha que cair na danação de minha alma, a curiosidade me consumia.
A passagem estreita fora pela barata difícil, e eu me havia esgueirado com nojo através daquele corpo de cascas e lama. E terminara, também eu toda imunda, por desembocar através dela para o meu passado que era o meu contínuo presente e o meu futuro contínuo –
Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos. Por que foi que a Bíblia se ocupou tanto dos imundos, e fez uma lista dos animais imundos e proibidos? por que se, como os outros, também eles haviam sido criados? E por que o imundo era proibido? Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.
Eu estava sabendo que o animal imundo da Bíblia é proibido porque o imundo é a raiz – pois há coisas criadas que nunca se enfeitaram e conservaram-se iguais ao momento em que foram criadas,
A barata é um ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso. Não, não, ela mesma não tem lado direito nem avesso: ela é aquilo. O que nela é exposto é o que em mim eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu avesso ignorado.
Pois a atualidade não tem esperança, e a atualidade não tem futuro: o futuro será exatamente de novo uma atualidade.
O mundo só não me amedrontaria se eu passasse a ser o mundo.
Não, não tocariam. Eu seria obrigada a continuar a reconhecer. E reconhecia na barata o insosso da vez em que eu estivera grávida.
eu abandonava a minha organização humana – para entrar nessa coisa monstruosa que é a minha neutralidade viva.
Eu estivera o tempo todo sem querer pensar no que já realmente pensara: que a barata é comível como uma lagosta, a barata era um crustáceo.
Pois, à luz do amor de duas baratas me veio a lembrança de um amor verdadeiro que eu tivera uma vez e que não sabia que tivera – pois amor era então o que eu entendesse de uma palavra.
Ah, será que nós originalmente não éramos humanos? e que, por necessidade prática, nos tornamos humanos? isso me horroriza, como a ti. Pois a barata me olhava com sua carapaça de escaravelho, com seu corpo rebentado que é todo feito de canos e de antenas e de mole cimento – e aquilo era inegavelmente uma verdade anterior a nossas palavras, aquilo era inegavelmente a vida que até então eu não quisera.
Enquanto que os seres inumanos, como a barata, realizam o próprio ciclo completo, sem nunca errar porque eles não escolhem. Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou. Sou dona de minha fatalidade e, se eu decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza especificamente viva. Mas se eu cumprir meu núcleo neutro e vivo, então, dentro de minha espécie, estarei sendo especificamente humana.
E que, só por uma anomalia da natureza, é que, em vez de sermos o Deus, assim como os outros seres O são, em vez de O sermos, nós queríamos vê-Lo.
Mas agora, que eu sabia que minha alegria fora o sofrimento, eu me perguntava se estava fugindo para um Deus por não suportar minha humanidade. Pois precisava de alguém que não fosse mesquinho como eu, alguém que fosse tão mais largo do que eu a ponto de admitir a minha desgraça sem usar sequer a piedade e o consolo
Mas é a mim que caberá impedir-me de dar nome à coisa. O nome é um acréscimo e impede o contato com a coisa. O nome da coisa é um intervalo para a coisa. A vontade do acréscimo é grande – porque a coisa nua é tão tediosa.
(Em todas as religiões Deus exige ser amado.)
Era como se eu me organizasse dentro do fato de ter dor de estômago porque, se eu não a tivesse mais, também perderia a maravilhosa esperança de me livrar um dia da dor de estômago: minha vida antiga me era necessária porque era exatamente o seu mal que me fazia usufruir da imaginação de uma esperança que, sem essa vida que eu levava, eu não conheceria.
basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele,
O mundo independia de mim – esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim?