A Paixão Segundo G.H.
Rate it:
Open Preview
Read between December 8, 2020 - September 18, 2023
2%
Flag icon
Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.
29%
Flag icon
A esperança de quê? Pela primeira vez eu me espantava de sentir que havia fundado toda uma esperança em vir a ser aquilo que eu não era. A esperança – que outro nome dar? – que pela primeira vez eu agora iria abandonar, por coragem e por curiosidade mortal. A esperança, na minha vida anterior, teria se fundado numa verdade? Com espanto infantil, eu agora duvidava.
Tamiris Crepalde
Chama esperança a construção que ela fez de uma identidade falsa, o tudo nela que vem de fora... Enquanto seu self era aprisionado em um armário escondido no quarto mais profundo do seu ser.
31%
Flag icon
Dessa civilização só pode sair quem tem como função especial a de sair: a um cientista é dada a licença, a um padre é dada a permissão. Mas não a uma mulher que nem sequer tem as garantias de um título. E eu fugia, com mal-estar eu fugia.
Tamiris Crepalde
Numa estrutura social em que a pressão por possuir uma dada postura oprime para que faça parte, uma mulher que se dispõe a ser quem verdadeiramente é, não pode fazer parte.
33%
Flag icon
É que por enquanto a metamorfose de mim em mim mesma não faz nenhum sentido. É uma metamorfose em que perco tudo o que eu tinha, e o que eu tinha era eu – só tenho o que sou. E agora o que sou?
33%
Flag icon
G.H. era uma mulher que vivia bem, vivia bem, vivia bem, vivia na supercamada das areias do mundo, e as areias nunca haviam derrocado de debaixo de seus pés: a sintonização era tal que, à medida que as areias se moviam, os pés se moviam em conjunto com elas, e então tudo era firme e compacto.
Tamiris Crepalde
Ela se movia junto às areias para não se desequilibraer, mas esse movimento era no fim apenas uma ilusão de solidez
36%
Flag icon
E porque são a raiz é que não se podia comê-las, o fruto do bem e do mal – comer a matéria viva me expulsaria de um paraíso de adornos, e me levaria para sempre a andar com um cajado pelo deserto. Muitos foram os que andaram com um cajado pelo deserto.
Tamiris Crepalde
'me expulsaria de um paraíso de adornos' mais uma referência sobre perder o seu lugar na civilização que ela existia?
47%
Flag icon
E era por não ouvir mais a minha resposta, que sabia que me havia abandonado já para fora de meu alcance.
48%
Flag icon
Dá-me a tua mão. Porque não sei mais do que estou falando. Acho que inventei tudo, nada disso existiu! Mas se inventei o que ontem me aconteceu – quem me garante que também não inventei toda a minha vida anterior a ontem?
49%
Flag icon
Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
49%
Flag icon
Sei, é ruim segurar minha mão. É ruim ficar sem ar nessa mina desabada para onde eu te trouxe sem piedade por ti, mas por piedade por mim. Mas juro que te tirarei ainda vivo daqui – nem que eu minta, nem que eu minta o que meus olhos viram. Eu te salvarei deste terror onde, por enquanto, eu te preciso. Que piedade agora por ti, a quem me agarrei. Deste-me inocentemente a mão, e porque eu a segurava é que tive coragem de me afundar. Mas não procures entender-me, faze-me apenas companhia. Sei que tua mão me largaria, se soubesse.
50%
Flag icon
Eu me sentia incapaz de ser tão real quanto a realidade que estava me alcançando – estaria eu começando em contorções a ser tão nuamente real quanto o que eu via?
50%
Flag icon
Estou tentando te dizer de como cheguei ao neutro e ao inexpressivo de mim. Não sei se estou entendendo o que falo, estou sentindo – e receio muito o sentir, pois sentir é apenas um dos estilos de ser.
51%
Flag icon
Oh, meu amor desconhecido, lembra-te de que eu estava ali presa na mina desabada, e que a essa altura o quarto já se tornara de um familiar inexprimível, igual ao familiar verídico do sonho. E, como do sonho, o que não te posso reproduzir é a cor essencial de sua atmosfera. Como no sonho, a “lógica” era outra, era uma que não faz sentido quando se acorda, pois a verdade maior do sonho se perde.
53%
Flag icon
Eu estava vivendo a pré-história de um futuro. Como uma mulher que nunca teve filhos mas os terá daí a três milênios, eu já vivia hoje do petróleo que em três milênios ia jorrar.
54%
Flag icon
Meu método de visão era inteiramente imparcial: eu trabalhava diretamente com as evidências da visão, e sem permitir que sugestões alheias à visão predeterminassem as minhas conclusões; eu estava inteiramente preparada para surpreender a mim mesma. Mesmo que as evidências viessem contrariar tudo o que já estava em mim assentado pelo meu tranquilíssimo delírio.
57%
Flag icon
Se tu puderes saber através de mim, sem antes precisar ser torturado, sem antes teres que ser bipartido pela porta de um guarda-roupa, sem antes ter quebrado os teus invólucros de medo que com o tempo foram secando em invólucros de pedra, assim como os meus tiveram que ser quebrados sob a força de uma tenaz até que eu chegasse ao tenro neutro de mim – se tu puderes saber através de mim... então aprende de mim, que tive que ficar toda exposta e perder todas as minhas malas com suas iniciais gravadas.
Tamiris Crepalde
Aprende sobre as dificuldades e dores do amor sem precisar se expor, se confrontar, sem precisar amar.
60%
Flag icon
Cada palavra nossa – no tempo que chamávamos de vazio – cada palavra era tão leve e vazia como uma borboleta: a palavra de dentro esvoaçava de encontro à boca, as palavras eram ditas mas nem as ouvíamos porque as geleiras liquefeitas faziam muito barulho enquanto corriam. No meio do fragor líquido, nossas bocas se mexiam dizendo, e na verdade só víamos as bocas se mexendo mas não as ouvíamos – olhávamos um para a boca do outro, vendo-a falar, e pouco importava que não ouvíssemos, oh em nome de Deus pouco importava.
Tamiris Crepalde
Momentos de esquecimento do amor que se sente, de presença física e ausência mental e sentimental.
63%
Flag icon
O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou não o nosso fatal: de nós depende realizarmos o nosso destino fatal. Enquanto que os seres inumanos, como a barata, realizam o próprio ciclo completo, sem nunca errar porque eles não escolhem. Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou. Sou dona de minha fatalidade e, se eu decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza especificamente viva.
63%
Flag icon
E que, só por uma anomalia da natureza, é que, em vez de sermos o Deus, assim como os outros seres O são, em vez de O sermos, nós queríamos vê-Lo. Não faria mal vê-Lo, se fôssemos tão grandes quanto Ele. Uma barata é maior que eu porque sua vida se entrega tanto a Ele que ela vem do infinito e passa para o infinito sem perceber, ela nunca se descontinua.
66%
Flag icon
Mas agora, que eu sabia que minha alegria fora o sofrimento, eu me perguntava se estava fugindo para um Deus por não suportar minha humanidade.
Tamiris Crepalde
A busca ao divino por não aceitar seus próprios erros?
67%
Flag icon
uma alegria inexpressiva, um prazer que não sabe que é prazer
Tamiris Crepalde
Um fingimento ?
67%
Flag icon
O que é Deus estava mais no barulho neutro das folhas ao vento que na minha antiga prece humana.
68%
Flag icon
O opaco me reverberava nos olhos. O segredo de minha trajetória milenar de orgia e morte e glória e sede até eu finalmente encontrar o que eu sempre tivera, e para isso tinha precisado morrer antes. Ah, estou sendo tão direta que chego a parecer simbólica.
74%
Flag icon
E eis que eu estava sabendo que a promessa divina de vida já está se cumprindo, e que sempre se cumpriu. Anteriormente, só de vez em quando, eu era lembrada, numa visão instantânea e logo afastada, de que a promessa não é somente para o futuro, é ontem e é permanentemente hoje: mas isso me era chocante. Eu preferia continuar pedindo, sem ter a coragem de já ter.
Tamiris Crepalde
Sinto uma proximidade grande do que é a filosofia espírita
75%
Flag icon
Nós somos muito atrasados e não temos ideia de como aproveitar Deus numa intertroca – como se ainda não tivéssemos descoberto que o leite se bebe. Daí a alguns séculos ou daí a alguns minutos talvez digamos espantados: e dizer que Deus sempre esteve! quem esteve pouco fui eu – assim como diríamos do petróleo de que a gente finalmente precisou a ponto de saber como tirá-lo da terra, assim como um dia lamentaremos os que morreram de câncer sem usar o remédio que está. Certamente ainda não precisamos não morrer de câncer. Tudo está. (Talvez seres de outro planeta já saibam das coisas e vivam numa ...more
Tamiris Crepalde
Não sabemos como nos aproveitar do conhecimento universal, pois tudo esta, só não alcançamos aquilo de que não precisamos o bastante.
77%
Flag icon
eras a pessoa mais antiga que eu jamais conheci. Eras a monotonia de meu amor eterno, e eu não sabia. Eu tinha por ti o tédio que sinto nos feriados. O que era? era como a água escorrendo numa fonte de pedra, e os anos demarcados na lisura da pedra, o musgo entreaberto pelo fio d’água correndo, e a nuvem no alto, e o homem amado repousando, e o amor parado, era feriado, e o silêncio no voo dos mosquitos. E o presente disponível. E minha libertação lentamente entediada, a fartura, a fartura do corpo que não pede e não precisa.
78%
Flag icon
O tédio profundo – como um grande amor – nos unia. E na manhã seguinte, de manhã bem cedo, o mundo se me dava. As asas das coisas estavam abertas, ia fazer calor de tarde, já se sentia pelo suor fresco daquelas coisas que haviam passado a noite morna, como num hospital em que os doentes ainda amanhecem vivos.
Tamiris Crepalde
A dificuldade de não ver a beleza das pequenas coisas, a necessidade de aventura quando se tem paz. O não perceber que o verdadeiro amor é diario e monótono e é um dia comum.
87%
Flag icon
A despersonalização como a destituição do individual inútil – a perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser. Pouco a pouco tirar de si, com um esforço tão atento que não se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da própria pele, as características. Tudo o que me caracteriza é apenas o modo como sou mais facilmente visível aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecível por mim. Assim como houve o momento em que vi que a barata é a barata de todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar em mim a mulher de todas as mulheres.
Tamiris Crepalde
Se despersonalizar na eternidade, perdendo aquilo que nos faz individuais e se tornando parte do todo.
89%
Flag icon
E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crúcis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a ...more