A Paixão Segundo G.H.

by Clarice Lispector

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.

Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida.

perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando.

o que era eu? Era o que os outros sempre me haviam visto ser, e assim eu me conhecia.

viver não é coragem, saber que se vive é a coragem

Todo momento de “falta de sentido” é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero porque não tenho garantias.

Tomar consciência da falta de um sentido teria sido sempre o meu modo negativo de sentir o sentido?

Anteriormente, quando eu me localizava, eu me ampliava. Agora eu me localizava me restringindo

O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou não o nosso fatal: de nós depende realizarmos o nosso destino fatal. Enquanto que os seres inumanos, como a barata, realizam o próprio ciclo completo, sem nunca errar porque eles não escolhem. Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou. Sou dona de minha fatalidade e, se eu decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza especificamente viva. Mas se eu cumprir meu núcleo neutro e vivo, então, dentro de minha espécie, estarei sendo especificamente humana.

– Mas é que tornar-se humano pode se transformar em ideal e sufocar-se de acréscimos...

Somos livres, e este é o inferno.

Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não a de ouvir a resposta.