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Kindle Notes & Highlights
Penso com frequência nessa imagem que sou a única ainda a ver e que nunca mencionei a ninguém. Ela continua lá, no mesmo silêncio, fascinante. Entre todas as imagens de mim mesma, é a que me agrada, nela me reconheço, com ela me encanto.
De repente, ela sabe, ali, naquele instante, ela sabe que ele não a conhece, que nunca a conhecerá, que não tem como conhecer tanta perversidade.
Estamos juntos numa vergonha por princípio de ter de viver a vida.
O mais velho sofre por não praticar livremente o mal, por não comandar o mal, não só aqui, mas em todo lugar.
Às vezes também dava para rir, mas nunca tanto quanto nós. Esqueço tudo, me esqueço de dizer isso, que éramos crianças risonhas, meu irmão mais moço e eu, ríamos até perder o fôlego, a vida.
O pavoroso não era isso que estou dizendo dela, seus traços, seu ar de felicidade, sua beleza, não, o pavoroso era que ela estava sentada ali onde estivera sentada minha mãe quando ocorreu a substituição, que eu sabia que ninguém estava ali a não ser ela mesma, mas que justamente essa identidade insubstituível havia desaparecido e eu não tinha meios de fazer que voltasse, que começasse a voltar.
As fotos, olhamos, não a nós mesmos nas fotos, mas as próprias fotografias, cada uma separadamente, sem nenhum comentário, mas olhamos e nos vemos.
Ele começa a ter uma levíssima noção de que a partida que o separará dela é a grande sorte de sua história juntos.
Talvez tenha descoberto que nunca se falaram, a não ser nos gritos do quarto à noite.
Ele a olha. Com os olhos fechados, ainda a olha.
E às vezes ele fica com medo, de repente se preocupa com a saúde dela como se descobrisse que ela é mortal e lhe ocorresse a ideia de que podia perdê-la.
Nesta noite não suporto mais pensar no homem de Cholen. Não suporto tampouco pensar em H. L. É como se já tivessem uma vida completa, como se ela lhes viesse de fora.
Que a vida é imortal enquanto vive, enquanto está em vida. Que a imortalidade não é uma questão de mais ou menos tempo, não é uma questão de imortalidade, é uma questão de alguma outra coisa que continua desconhecida.
Meu irmão não tinha nada para bradar no deserto, não tinha nada a dizer, lá nem aqui mesmo, nada. Não tinha instrução, nunca chegou a se instruir em coisa nenhuma. Não sabia falar, mal conseguia ler, mal conseguia escrever, às vezes achávamos que nem sabia sofrer.
Era como se ele amasse essa dor, amasse como havia me amado, muito intensamente, talvez a ponto de morrer, e agora ele a preferia a mim.