More on this book
Community
Kindle Notes & Highlights
ao contrair, os dois contraentes estão se exigindo uma mútua abolição ou aniquilamento, a abolição daquele que cada um era e pelo qual cada um se apaixonou ou de quem talvez tenha visto as vantagens,
Até as coisas mais indeléveis têm uma duração, como as que não deixam vestígio ou nem mesmo acontecem, e se estivermos prevenidos e as anotarmos ou gravarmos ou filmarmos, se nos enchermos de recordações e chegarmos até a substituir o acontecido pela mera constância, registro e arquivamento do que aconteceu, de modo que o que na verdade ocorra desde o princípio seja nossa anotação ou nossa gravação ou nossa filmagem, apenas isso, mesmo nesse aperfeiçoamento infinito da repetição teremos perdido o tempo em que as coisas de fato aconteceram (embora seja o tempo da anotação); e enquanto
...more
Assim, o que vemos e ouvimos acaba se assemelhando e até se igualando ao que não vimos nem ouvimos, é apenas uma questão de tempo, ou de que desapareçamos.
de querer compreender tudo o que se diz e que chega a meus ouvidos, tanto no trabalho como fora dele, ainda que à distância, ainda que num dos inúmeros idiomas que desconheço, ainda que em murmúrios indistinguíveis ou em sussurros imperceptíveis, ainda que seja melhor eu não compreender e o que se diz não seja dito para que eu ouça, ou mesmo seja dito justamente para que eu não capte. Posso desligar, mas somente em certos estados de espírito irresponsável ou mediante um grande esforço, por isso às vezes me alegro com que os murmúrios sejam de fato indistinguíveis e os sussurros imperceptíveis,
...more
Por isso queria que Luisa dormisse, não apenas para seu próprio bem e para que sarasse, mas sobretudo para eu poder me dedicar com todas as minhas faculdades e experiência interpretativas a escutar o que devia estar sendo dito naquele murmúrio de Miriam e do homem do braço canhoto.
Era simplesmente instalar-se na convicção ou na superstição de que não existe o que não se diz. E é verdade que somente o que não se diz nem se exprime é o que nunca traduzimos.
As maiores tensões que se produzem nesses foros internacionais não são as ferozes discussões entre delegados e representantes à beira de uma declaração de guerra, mas sim quando por algum motivo não há tradutor para traduzir algo ou este falha no meio de uma exposição por alguma razão sanitária ou psiquiátrica, o que acontece com relativa freqüência.
— Se me permite perguntar e se não for atrevimento demais, a senhora, em sua vida amorosa, obrigou alguém a querê-la?
Não me delatou, não me desmentiu, não interveio, permaneceu calada, e achei que se me permitia aquilo poderia permitir-me tudo ao longo de minha vida inteira, ou de minha meia vida ainda não vivida.
As pessoas só querem dormir, os arrependimentos antecipados nos paralisariam, imaginar o que vem depois dos atos ainda não cometidos é sempre horrível, por isso nós, governantes, somos tão imprescindíveis, estamos aqui para tomar as decisões que os outros nunca tomariam, imobilizados por suas dúvidas e pela falta de vontade. Nós escutamos seu medo.
Assim dorme ou crê dormir a maioria dos esposos e dos casais, os dois se viram para o mesmo lado quando se despedem, de maneira que um dá as costas para o outro ao longo da noite inteira e se sabe respaldado por ele ou ela, por esse outro, e no meio da noite, ao despertar sobressaltado por um pesadelo ou ser incapaz de conciliar o sono, ao padecer de uma febre ou crer-se sozinho e abandonado no escuro, basta virar-se e ver então, de frente, o rosto do que o protege, que se deixará beijar o que no rosto é beijável (nariz, olhos e boca; queixo, testa e faces, é todo o rosto) ou talvez, meio
...more
Escutar é o mais perigoso, é saber, é ser inteirado e estar a par, os ouvidos não têm pálpebras que se possam fechar instintivamente ao que é dito, não se podem resguardar do que se pressente que se vai escutar, sempre é tarde demais.
“Minhas mãos são de tua cor”, anuncia a Macbeth; “mas me envergonha trazer um coração tão branco”, como se tentasse contagiá-lo com sua despreocupação em troca de ela se contagiar com o sangue derramado de Duncan, a não ser que “branco” queira dizer aqui “pálido e temeroso” ou “acovardado”.
Assimila-se a ele e pretende assim que ele se assimile a ela, a seu coração tão branco: não é tanto que ela compartilhe sua culpa nesse momento quanto que procure fazê-lo compartilhar sua irremediável inocência, ou sua covardia.
A casa nova ia parecendo um pouco, ia recordando um pouco a da minha infância, isto é, a de Ranz, meu pai, como se ele tivesse dado indicações durante suas visitas ou com sua mera presença tivesse criado necessidades que, na falta da continuidade das minhas sugestões e de um critério firme de Luisa, fossem se consumando pouco a pouco.
A partir de amanhã não haverá as pequenas incógnitas que durante quase um ano encheram meus dias, ou fizeram que os dias fossem vividos da melhor maneira possível, que é em estado de vaga espera e de vaga ignorância. Saberei demais, saberei mais do que quero saber acerca de Luisa, terei diante de mim o que me interessa dela e o que não me interessa, já não haverá seleção nem escolha, a tênue ou mínima escolha diária, que supunha telefonar-se, marcar um encontro, encontrar-se com os olhos procurando à porta de um cinema ou entre as mesas de um restaurante, ou então arrumar-se e pôr-se a caminho
...more
nascer depende de um movimento casual, de uma frase pronunciada por um desconhecido no outro canto do mundo, um gesto interpretado, uma mão no ombro e um sussurro que pôde não ser sussurrado. Cada passo dado e cada palavra dita por qualquer pessoa em qualquer circunstância (na hesitação ou na convicção, na sinceridade ou no engano) têm repercussões inimagináveis que afetam quem não nos conhece nem pretende conhecer, quem não nasceu ou ignora que poderá aturar-nos, e se transformam literalmente em caso de vida ou morte, tantas vidas e mortes têm sua enigmática origem no fato de que ninguém
...more
Mas ninguém conhece a ordem dos mortos nem a dos vivos, a quem caberá primeiro a dor ou primeiro o medo.
Mateu, um homem acostumado com o que é a pintura, um homem de sessenta anos que estava havia vinte e cinco no Prado, de repente queria que continuasse a cena de um Rembrandt que não entendia (ninguém entende, entre Artemisa e Sofonisba há um mundo de distância, a distância entre beber um morto e beber a morte, entre aumentar a vida e morrer, entre dilatá-la e matar-se).
Quase todo o mundo se envergonha de sua juventude, não é muito certo que tenha saudade dela, como se diz, ao contrário relega-a ao esquecimento ou renega-a, e com facilidade ou esforço confina sua origem à esfera dos pesadelos, ou dos romances, ou do que não existiu. Oculta-se a juventude, a juventude é secreta para os que já não nos conhecem jovens.
em suas histórias sempre se ateve ao que havia ou lhe havia acontecido, talvez por isso tenha de viver as coisas e experimentar suas duplicidades, porque só assim pode contá-las, só assim concebe o inconcebível, há quem não conheça outras fantasias além das consumadas, quem não seja capaz de imaginar nada e é pouco previdente por isso, imaginar evita muitas desgraças, quem antecipa sua morte raras vezes se mata, quem antecipa a dos outros raras vezes assassina, é preferível assassinar e matar-se com o pensamento, não deixa seqüelas nem pistas,
É antes que estar junto de alguém consiste em boa medida em pensar em voz alta, isto é, em pensar tudo duas vezes em vez de uma, uma com o pensamento e outra com o relato, o casamento é uma instituição narrativa.
Por amor ou pelo que é sua essência — contar, informar, anunciar, comentar, opinar, distrair, escutar e rir, e projetar em vão — uma pessoa trai os outros, os amigos, os pais, os irmãos, os consangüíneos e os não-consangüíneos, os amores antigos e as convicções, as ex-amantes, o próprio passado e a própria infância, a própria língua que deixa de falar e sem dúvida a própria pátria, tudo o que em toda pessoa há de secreto, ou talvez de passado. Para agradar a quem se ama denigre-se o resto do existente, nega-se e execra-se tudo para contentar e tranqüilizar um só que pode ir embora, a força do
...more
Não o contar é apagá-lo um pouco, esquecê-lo um pouco, negá-lo, não contar sua história pode ser um pequeno favor que fazem ao mundo.
Seu vídeo será asqueroso, mas o verei várias vezes até me acostumar a ele, até que não pareça ruim demais e seus defeitos acabem me atraindo, esta é a única vantagem da repetição, ela distorce tudo e torna tudo familiar, o que repele na vida atrai finalmente quando se vê bastantes vezes numa tela de tevê.
“Às vezes me pergunto se não seria melhor que estivéssemos todos quietos, que estivéssemos todos mortos, afinal de contas é a única coisa que no fundo queremos, a única idéia futura a que nos vamos acostumando, e diante dela não cabem dúvidas nem arrependimentos antecipados”.
não quero saber, o mundo é plácido quando não se sabe, não seria melhor se ficássemos todos quietos?
por que fazer e não fazer, por que dizer sim ou não, por que se cansar com um quem sabe ou um talvez, por que dizer, por que calar, por que se negar, por que saber alguma coisa se nada do que acontece acontece, porque nada acontece sem interrupção, nada perdura nem persevera nem se recorda incessantemente, o que sucede é idêntico ao que não sucede, o que descartamos ou deixamos passar idêntico ao que pegamos e agarramos, o que experimentamos idêntico ao que não provamos, aplicamos toda a nossa inteligência e nossos sentidos e nosso afã à tarefa de discernir o que será nivelado, ou já está, e
...more
Contar deforma, contar os fatos deforma os fatos e os tergiversa e quase os nega, tudo o que se conta passa a ser irreal e aproximado embora seja verídico, a verdade não depende de que as coisas tenham sido ou acontecido, mas de que permaneçam ocultas e sejam desconhecidas e não contadas, enquanto se relatam ou se manifestam ou se mostram, mesmo que seja no que parece mais real, na televisão ou no jornal, no que se chama realidade ou vida ou vida real até, passam a fazer parte da analogia e do símbolo, já não são fatos, mas se transformam em reconhecimento.
só então acontecem as coisas, quando não se relatam, contá-las é espantá-las e afugentar os fatos, os casais se contam tudo o que se refere aos outros, não a si mesmos, a menos que acreditem que pertença a ambos:
quem se atreveria a tanto, não tanto a fazer como a dizer que fez, a vida ou os anos vindouros não dependem do que se faz, mas do que se sabe de alguém, do que se sabe que fez e do que não se sabe porque não houve testemunhas e ele se calou.