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Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.
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Disse que sim, mas que no fundo tanto fazia. Perguntou-me, depois, se eu não estava interessado em uma mudança de vida. Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo caso, todas se equivaliam, e que a minha aqui não me desagradava em absoluto.
À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, poderíamos nos casar.
O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça.
É claro que amava mamãe, mas isso não queria dizer nada. Todos os seres normais tinham em certas ocasiões desejado, mais ou menos, a morte das pessoas que amavam.
Assim, quanto mais pensava, mais coisas esquecidas ia tirando da memória. Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia poderia sem dificuldade passar cem anos numa prisão.
Gostaria de tentar explicar-lhe cordialmente, quase com afeição, que nunca conseguira arrepender-me verdadeiramente de nada.
Mas todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida. No fundo, não ignorava que tanto faz morrer aos trinta ou aos setenta anos, pois em qualquer dos casos outros homens e outras mulheres viverão, e isso durante milhares de anos.
Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio.

