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Chegar lá era a única coisa que tinha na vida.
Tudo ficou pelo caminho: juventude, alegria, pedaços de pele, mililitros de suor, quilos do corpo, e os parcos e velhos fios de esperança de que houvesse alguma coisa invisível que ajudasse os homens sobre a Terra.
Naqueles anos de romaria vira de tudo no caminho e teve piedade, porque às vezes nem Deus livra o homem de enlouquecer. O demônio é artista. Poucos escapam dos enganos do Satanás.
Nem o ar tinha esperança de ser vento. Era custoso acreditar que morasse alguém naquele cemitério de gigantes.
Essas lembranças de Mariinha eram assim, chegavam o tempo todo, sem palavras, eram fotos da memória, cenas apressadas.
mas aprendeu no Horto que a única forma de comover naquele pedaço perdido de mundo era a ameaça de que Deus estava vendo tudo e não tolerava descaridades.
A moça pensou uma coisa egoísta: ele sofria mais que ela. Que bom ver alguém que sofre mais. Que bom. Aquela desgraça de destino, seja lá como tenha acontecido, tornava a sua sina um pouco mais leve. Ela sempre achou que nunca encontraria alguém que sofresse mais que ela. Encontrou, por segundos.
Ela, mais bicho que ele.
Foi no caminho de Juazeiro a Candeia que o diabo apareceu pela primeira vez como seu pai.
Samuel teve certeza de que o velho tentou responder.
Se pudesse, mataria o pai. Nunca matou, não tinha arma, não tinha ideia do tamanho do homem. Eram anos de motivos, especialmente pelos últimos quinze dias, o rosto de Mariinha, o fio de voz, os quatro pedidos. Respirou fundo e foi.
Ela chamou a chuva, pediu que viesse. Antes, pouco antes, o céu estava limpo, sem dar sinal nenhum de que as nuvens estavam para chorar. Todas as nuvens do céu choraram ao mesmo tempo.
A filha chorou a morte da mãe duas vezes, por perdê-la e por não ter aproveitado a oportunidade da despedida.
Tinha muita coisa pra dizer e as palavras que não se dizem ao morto queimam na boca para sempre.
Viu de novo a cabeça, aterrorizante, mas dessa vez subiu a vista para o alto do morro e descobriu, espantado, que o resto do corpo do santo estava lá em cima.
Eu não acredito em santo, nem em amor, eu quero é ficar rico.
Entregou a Mariinha um rosário da Mãe de Deus, abençoado, de contas azuis e brancas. Mariinha notou que havia uma conta verde no lugar de uma das bolinhas azuis que deveria estar ali.
Acreditava que os santos eram todos uma mera invenção dos desesperados e nada do que Mariinha dissera a vida toda o convenceu do contrário. Santos são pedras e só pedras. Era a lei de Samuel.
Nutria apreço suficiente pela morte para não temê-la.
Francisco era ajudante habitual. Cresceu sabendo que até a morte faz falta quando demora a vir.
Riam das desgraças, suas e dos outros. Desgraça é tudo coisa de se rir.
Cada minuto fazia o recado do santo perturbar mais e mais o doutorzinho. Isso não cabia na sua vida previsível. Todos os dias ele acordava e dirigia o carro até as cidades onde trabalhava, sabendo exatamente o cardápio de aberrações que iria encontrar. Recado de santo, isso não fazia parte. Foi perturbador.
Os tímidos, na hora em que atacam, são das feras piores, e dr. Adriano beijou Madeinusa sem pedir licença. Não precisava.
Eram tempos difíceis para os românticos.
Era tudo tão lindo que nem coube nos seus pequenos sonhos. Ela precisou aprender a sonhar mais.
Os que sobraram não eram mais católicos e aprenderam que adorar imagens não é de Deus.
O povo que sobrou em Candeia ainda nutria ódio pelo santo traidor, que não teve forças sequer de evitar que a própria cabeça permanecesse caída no chão, longe do corpo, como um decapitado qualquer.
no sertão, mulher que não casa é mandacaru sem flor.
Candeia tornou-se a capital mundial do amor romântico, dos casamentos apaixonados, dos casais enlouquecidos de paixão.
Naqueles versos e rimas havia a grave denúncia de que Osório, o eterno prefeito, havia roubado muito, mas muito dinheiro dos cofres do município. Descrevia sua casa na capital, o luxo dos seus carros, as joias da esposa — que, segundo o cordel, era muito bem tratada para que nunca desconfiasse de seu caso de amor secreto em Candeia.
A Voz falava de saudade e ele pensava em Mariinha — mas sem tristeza, porque nem toda saudade é triste.
Via-se de tudo, porque esperança e desejo obram o impossível.
Samuel observava do sofá e tinha o coração dividido entre a gratidão pela acolhida e a profunda tristeza de não fazer parte daquela vida, por não ter família.
A sua solidão era para sempre. Não fazia parte. Não tinha uma, duas, três pessoas para quem pudesse apontar e dizer: “Eles sabem de toda a minha vida, eles estão comigo, eles me aceitam, são minha família”.
A consciência da solidão doía mais que qualquer outra dor.
— Samuel é filho de Manoel Vale. — E quem é ele? — perguntou Francisco. Foi a mulher quem teve coragem de revelar: — O Meticuloso.
Eu quero morrer ouvindo você cantar.
Nunca é como a lua, não pertence a ninguém.
Rosário gostava de cantar às cinco da manhã e cinco da tarde, igual a sua mãe.
Nasceu dele um homem novo, definitivamente solitário, marcado por uma tragédia do passado da qual ele não tinha a menor culpa.
— Final, final mesmo, Samuel, é só quando eu baixar teu caixão na cova. Ainda dá tempo. — Tu sonha muito, Chico. — Foi a morte que me ensinou. O tempo de sonhar é em cima da terra.
É certo que a vida não lhe deu tantas chances de sonhar, mas ele teimava.
Significa, Rosário, que você é o meu milagre.