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Kindle Notes & Highlights
Quando alguém repete uma história, supomos que não se lembra de já tê-la contado, mas muitas vezes repetimos histórias conscientemente, porque somos incapazes de reprimir o desejo, a alegria de voltar a contá-las.
Tariâna Rodovalho liked this
os livros extraídos da realidade frequentemente não passam de tênues vislumbres e estilhaços de tudo o que vimos e ouvimos.
Basta-nos dizer: “Não viemos a Bergamo para nos divertir” ou “Do que é que o ácido sulfídrico tem cheiro”, para restabelecer de imediato nossas antigas relações, nossa infância e juventude, ligadas indissoluvelmente a essas frases, a essas palavras. Uma dessas frases ou palavras faria com que nós, irmãos, reconhecêssemos uns aos outros na escuridão de uma gruta, entre milhões de pessoas. Essas frases são o nosso latim, o vocabulário de nossos tempos idos é como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilônicos, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive em
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Essas frases são o fundamento de nossa unidade familiar, que subsistirá enquanto estivermos no mundo, recriando-se e ressuscitando nos mais diferentes pontos do planeta, quando um de nós disser — Ilustre senhor Lipmann — e logo ressoar em nossos ouvidos a voz impaciente de meu pai: — Parem com essa história! Eu já ouvi isso mais de mil vezes!
Na verdade, mesmo reclamando e se queixando, minha mãe tinha sido feliz em Sassari e em Palermo: porque era alegre por natureza, e onde quer que fosse arranjava pessoas a quem amar e por quem ser amada, onde quer que fosse arranjava um jeito de se divertir com as coisas que tinha a seu redor, e de ser feliz.
Era feliz também naqueles primeiros tempos em Turim, tempos difíceis quando não duros, e durante os quais chorava com frequência, por causa dos maus bofes de meu pai, por causa do frio, da saudade de outros lugares, de seus filhos que cresciam e que precisavam de livros, de agasalhos, de sapatos, e não havia dinheiro suficiente. Entretanto, era feliz, pois mal parava de chorar, tornava-se bastante alegre e cantava a plenos pulmões pela casa: o Lohengrin, A chinela perdida na neve e Don Carlos Tadrid. E mais tarde, quando se lembrava desses anos, dos anos em que ainda tinha todos os filhos em
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Como Turim é uma cidade chata! Como a gente se chateia aqui! Nunca acontece nada! Antigamente, pelo menos, éramos detidos! Agora não nos detêm mais. Esqueceram-se da gente. Sinto-me esquecido, deixado na sombra!
Às vezes tinha uma gripe. Ficava contente, porque achava a gripe uma doença mais nobre do que suas costumeiras indigestões. Tirava a temperatura: estava com trinta e sete e quatro. — Sabe que estou doente? — dizia contente a meu pai. — Estou com trinta e sete e quatro! — Trinta e sete e quatro? É pouco! — dizia meu pai. — Eu vou ao laboratório até com trinta e nove! Minha mãe dizia: — Vamos esperar até a noite! — Mas não esperava a noite, tirava a temperatura a toda hora. — Sempre trinta e sete e quatro! No entanto, estou me sentindo mal!
Nossa mãe é muito jovem! — lamentava-se Paola comigo, às vezes. — Eu, ao contrário, gostaria de ter uma mãe velha, gorda, com todos os cabelos brancos! Uma que ficasse sempre em casa, que bordasse toalhas. Como é a mãe do Adriano. Ter uma mãe muito velha, tranquila, me daria uma grande sensação de segurança. Uma que não tivesse tanto ciúme de minhas amigas. Eu viria visitá-la, e ela estaria ali, sempre serena, com o bordado, toda vestida de preto, e me daria bons conselhos! Dizia-lhe: — Se você vive cheia de tudo, por que não aprende a bordar? Minha sogra borda! Passa os dias bordando!
Eu ri tanto disso!
Acho que realmente todas as famílias se parecem, as infelizes cada uma à sua maneira. Até o que que eles tem de infelizes me fez rir de verdade!
Mas a sua sogra é surda! O que é que eu posso fazer, se não sou surda como a sua sogra? Eu me chateio de ficar sempre fechada em casa! Tenho vontade de passear! Dizia: — Imagine só se vou aprender a bordar! Não sou disso! Não sei dar ponto! Quando remendo as meias do papai, faço uns pontos horríveis, que depois a Natalina tem que desmanchar!
Paola dizia que o menino de Miranda era feio. — Tem traços feios, grosseiros — dizia. — Parece filho de um ferroviário. Agora, quando minha mãe ia ver o menino de Miranda, dizia: — Vou ver como está o ferroviário! Minha mãe gostava de todas as crianças pequenas. Gostava também das babás.
Dizia que eram pessoas extraordinárias, cultíssimas, honestas, como só se encontram na França.
Descobrira de repente, ao me casar, o cansaço e o trabalho: e disso me viera uma preguiça, que amolecia minha vontade e endurecia, no meu pensamento, as pessoas que me rodeavam; motivo pelo qual não sonhava com outra coisa ao meu redor a não ser com uma inércia absoluta; e esforçava-me para ordenar a Martina que, para o almoço, fizesse pratos de preparo rápido e que sujassem poucas panelas. Descobrira o dinheiro também: não que me tivesse tornado avarenta — sempre fui mão-furada, como minha mãe —, mas distinguira, por trás das coisas, a presença do dinheiro como uma complicação trabalhosa e
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O fascínio que exercia sobre mim essa casa sempre aberta a todos, com o corredor estreito e escuro onde se tropeçava na bicicleta do pai, com a salinha de visitas atulhada de móveis pomposos e gastos, de castiçais hebraicos e de pequenas maçãs vermelhas da propriedade de Sassi, espalhadas pelo chão sobre os tapetes puídos, era profundo e constante. Encontrava-se, às vezes, o velho pai nas escadas ou no corredor, sempre absorto em suas tramas de advogados e papéis timbrados, e sempre ocupado em transportar, subindo e descendo as escadas, sacolas cheias de maçãs e pimentões: costumava conversar
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Por que será que eu gosto tanto de gastar? — suspirava minha mãe de vez em quando. De fato, não conseguia ater-se ao regime de economia que tinha prescrito para si mesma.
Mas o que adianta irem bem, se daqui a pouco o Hitler vem e mata todo mundo? — Rognetta era sempre muito educado e, ao sair, costumava beijar a mão de minha mãe.
Em Florença quase não se encontrava comida; e, no fim da refeição, dando uma fruta a cada um de meus filhos, minha mãe dizia: — Para os pequenos uma fruta, para os grandes o diabo que os desfruta. — E contava da Grassi que, na outra guerra, todas as noites, pegava uma noz e a dividia em quatro: — Uma noz, Lidia! — Dando um pedaço para cada um de seus quatro filhos, Erika, Dina, Clara e Franz.
Depois da guerra, o mundo, ao contrário, parecia enorme, desconhecido e sem fronteiras. No entanto, minha mãe recomeçou a habitá-lo como podia. Recomeçou a habitá-lo com alegria, porque era alegre seu temperamento. Seu espírito não sabia envelhecer e jamais conheceu a velhice, que é estar afastado num canto, chorando o esfacelamento do passado. Minha mãe viu o esfacelamento do passado sem lágrimas, e não usou luto por ele. De resto, não gostava de vestir-se de luto. Quando sua mãe morrera, estava então em Palermo, e veio de lá para Florença, onde a mãe morrera repentinamente e sozinha. Sentiu
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