Léxico familiar
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Read between October 5 - December 17, 2024
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Quando alguém repete uma história, supomos que não se lembra de já tê-la contado, mas muitas vezes repetimos histórias conscientemente, porque somos incapazes de reprimir o desejo, a alegria de voltar a contá-las.
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os livros extraídos da realidade frequentemente não passam de tênues vislumbres e estilhaços de tudo o que vimos e ouvimos.
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Basta-nos dizer: “Não viemos a Bergamo para nos divertir” ou “Do que é que o ácido sulfídrico tem cheiro”, para restabelecer de imediato nossas antigas relações, nossa infância e juventude, ligadas indissoluvelmente a essas frases, a essas palavras. Uma dessas frases ou palavras faria com que nós, irmãos, reconhecêssemos uns aos outros na escuridão de uma gruta, entre milhões de pessoas. Essas frases são o nosso latim, o vocabulário de nossos tempos idos é como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilônicos, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive em ...more
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Essas frases são o fundamento de nossa unidade familiar, que subsistirá enquanto estivermos no mundo, recriando-se e ressuscitando nos mais diferentes pontos do planeta, quando um de nós disser — Ilustre senhor Lipmann — e logo ressoar em nossos ouvidos a voz impaciente de meu pai: — Parem com essa história! Eu já ouvi isso mais de mil vezes!
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Na verdade, mesmo reclamando e se queixando, minha mãe tinha sido feliz em Sassari e em Palermo: porque era alegre por natureza, e onde quer que fosse arranjava pessoas a quem amar e por quem ser amada, onde quer que fosse arranjava um jeito de se divertir com as coisas que tinha a seu redor, e de ser feliz.
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Era feliz também naqueles primeiros tempos em Turim, tempos difíceis quando não duros, e durante os quais chorava com frequência, por causa dos maus bofes de meu pai, por causa do frio, da saudade de outros lugares, de seus filhos que cresciam e que precisavam de livros, de agasalhos, de sapatos, e não havia dinheiro suficiente. Entretanto, era feliz, pois mal parava de chorar, tornava-se bastante alegre e cantava a plenos pulmões pela casa: o Lohengrin, A chinela perdida na neve e Don Carlos Tadrid. E mais tarde, quando se lembrava desses anos, dos anos em que ainda tinha todos os filhos em ...more
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Como Turim é uma cidade chata! Como a gente se chateia aqui! Nunca acontece nada! Antigamente, pelo menos, éramos detidos! Agora não nos detêm mais. Esqueceram-se da gente. Sinto-me esquecido, deixado na sombra!
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Às vezes tinha uma gripe. Ficava contente, porque achava a gripe uma doença mais nobre do que suas costumeiras indigestões. Tirava a temperatura: estava com trinta e sete e quatro. — Sabe que estou doente? — dizia contente a meu pai. — Estou com trinta e sete e quatro! — Trinta e sete e quatro? É pouco! — dizia meu pai. — Eu vou ao laboratório até com trinta e nove! Minha mãe dizia: — Vamos esperar até a noite! — Mas não esperava a noite, tirava a temperatura a toda hora. — Sempre trinta e sete e quatro! No entanto, estou me sentindo mal!
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Nossa mãe é muito jovem! — lamentava-se Paola comigo, às vezes. — Eu, ao contrário, gostaria de ter uma mãe velha, gorda, com todos os cabelos brancos! Uma que ficasse sempre em casa, que bordasse toalhas. Como é a mãe do Adriano. Ter uma mãe muito velha, tranquila, me daria uma grande sensação de segurança. Uma que não tivesse tanto ciúme de minhas amigas. Eu viria visitá-la, e ela estaria ali, sempre serena, com o bordado, toda vestida de preto, e me daria bons conselhos! Dizia-lhe: — Se você vive cheia de tudo, por que não aprende a bordar? Minha sogra borda! Passa os dias bordando!
Gabriela
Eu ri tanto disso! Acho que realmente todas as famílias se parecem, as infelizes cada uma à sua maneira. Até o que que eles tem de infelizes me fez rir de verdade!
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Mas a sua sogra é surda! O que é que eu posso fazer, se não sou surda como a sua sogra? Eu me chateio de ficar sempre fechada em casa! Tenho vontade de passear! Dizia: — Imagine só se vou aprender a bordar! Não sou disso! Não sei dar ponto! Quando remendo as meias do papai, faço uns pontos horríveis, que depois a Natalina tem que desmanchar!
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Paola dizia que o menino de Miranda era feio. — Tem traços feios, grosseiros — dizia. — Parece filho de um ferroviário. Agora, quando minha mãe ia ver o menino de Miranda, dizia: — Vou ver como está o ferroviário! Minha mãe gostava de todas as crianças pequenas. Gostava também das babás.
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Dizia que eram pessoas extraordinárias, cultíssimas, honestas, como só se encontram na França.
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Descobrira de repente, ao me casar, o cansaço e o trabalho: e disso me viera uma preguiça, que amolecia minha vontade e endurecia, no meu pensamento, as pessoas que me rodeavam; motivo pelo qual não sonhava com outra coisa ao meu redor a não ser com uma inércia absoluta; e esforçava-me para ordenar a Martina que, para o almoço, fizesse pratos de preparo rápido e que sujassem poucas panelas. Descobrira o dinheiro também: não que me tivesse tornado avarenta — sempre fui mão-furada, como minha mãe —, mas distinguira, por trás das coisas, a presença do dinheiro como uma complicação trabalhosa e ...more
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O fascínio que exercia sobre mim essa casa sempre aberta a todos, com o corredor estreito e escuro onde se tropeçava na bicicleta do pai, com a salinha de visitas atulhada de móveis pomposos e gastos, de castiçais hebraicos e de pequenas maçãs vermelhas da propriedade de Sassi, espalhadas pelo chão sobre os tapetes puídos, era profundo e constante. Encontrava-se, às vezes, o velho pai nas escadas ou no corredor, sempre absorto em suas tramas de advogados e papéis timbrados, e sempre ocupado em transportar, subindo e descendo as escadas, sacolas cheias de maçãs e pimentões: costumava conversar ...more
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Por que será que eu gosto tanto de gastar? — suspirava minha mãe de vez em quando. De fato, não conseguia ater-se ao regime de economia que tinha prescrito para si mesma.
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Mas o que adianta irem bem, se daqui a pouco o Hitler vem e mata todo mundo? — Rognetta era sempre muito educado e, ao sair, costumava beijar a mão de minha mãe.
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Em Florença quase não se encontrava comida; e, no fim da refeição, dando uma fruta a cada um de meus filhos, minha mãe dizia: — Para os pequenos uma fruta, para os grandes o diabo que os desfruta. — E contava da Grassi que, na outra guerra, todas as noites, pegava uma noz e a dividia em quatro: — Uma noz, Lidia! — Dando um pedaço para cada um de seus quatro filhos, Erika, Dina, Clara e Franz.
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Depois da guerra, o mundo, ao contrário, parecia enorme, desconhecido e sem fronteiras. No entanto, minha mãe recomeçou a habitá-lo como podia. Recomeçou a habitá-lo com alegria, porque era alegre seu temperamento. Seu espírito não sabia envelhecer e jamais conheceu a velhice, que é estar afastado num canto, chorando o esfacelamento do passado. Minha mãe viu o esfacelamento do passado sem lágrimas, e não usou luto por ele. De resto, não gostava de vestir-se de luto. Quando sua mãe morrera, estava então em Palermo, e veio de lá para Florença, onde a mãe morrera repentinamente e sozinha. Sentiu ...more