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Eu dou uma risada. Ele sorri de volta. Eu sinto que alguma coisa está acontecendo. — Seu nome, por favor? — pergunto, anotando o pedido no copo. — Qual nome você acha que eu tenho? — ele responde, me pegando de surpresa.
Hoje eu vivo a minha vida em total desobediência. Eu sinto que mesmo que eu fique parado, apenas existindo, estou desobedecendo às leis de Deus. E por mais que eu não tenha certeza se acredito ou não nessas leis, eu tenho medo do dia em que a tempestade chegar. Porque ela vai chegar, é só uma questão de tempo.
Quando mentir se torna um hábito tão frequente, chega uma hora em que as palavras saem sem esforço algum.
Também sinto meu suor escorrendo frio pela minha testa e meu coração parece que vai explodir a qualquer momento, porque ver minha mãe feliz desse jeito me deixa nas alturas, e saber que ela só está assim porque eu decidi vir para a igreja com ela hoje me joga no fundo do poço. Enquanto andamos juntos, é impossível não pensar que nossa relação virou um jogo de vida ou morte. A felicidade dela depende da minha infelicidade. A minha felicidade seria a infelicidade dela. E eu não sei qual dos dois cenários seria pior.
É inacreditável a minha habilidade de me jogar para baixo e entrar em uma espiral de desespero e, ainda assim, parecer pleno e equilibrado por fora.
É muito complicado ter os mesmos dilemas da Bridget Jones, só que aos dezenove anos.
Não que eu queira beijar cinco bocas na mesma noite, mas queria pelo menos sentir que existe essa possibilidade. Que dentro de uma festa lotada tocando pagode dos anos noventa existem cinco garotos que me beijariam. Mas hoje eu só quero um. E não tenho a menor ideia do que fazer.
O contraste de como eu me sinto dentro e fora de casa fica cada vez mais evidente. É cansativo viver nessa montanha-russa que sobe e desce o tempo inteiro. Eu não aguento mais. Quero andar em linha reta, na montanha-russa mais sem graça de todos os tempos. Ou melhor, quero descer desse brinquedo. Quero sair daqui. Eu não sei como sair daqui. Eu quero me sentir bem. Talvez eu devesse adotar um gato.
— Em nome de Jesus, amém — eu concluo. E imediatamente me sinto uma farsa por ousar conversar com Deus. Porque uma parte dentro de mim me diz que Ele sequer estava ouvindo, e essa oração não passa de um teatro para deixar minha mãe feliz.
Pois é. Daí estamos trocando mensagens, mas eu não sei direito o que tá rolando. Ele manda uns emojis de balão. E hoje ele mandou uma foto de um pedaço de bife. E me chamou pra sair! — eu conto, enquanto desvio das pessoas na calçada. — Tem certeza que a foto era mesmo de um bife? — Dan pergunta. — Danilo. Você é nojento. E sim, era um bife.
É como se todas as letras de músicas de amor fizessem sentido de repente.
Eu deveria me sentir confiante porque Arthur aperta minha mão de um jeito carinhoso e aproxima seu rosto do meu. Deveria estar tudo bem, mas eu estou inseguro porque não sei aonde isso aqui vai nos levar. Porque eu quero ir, mas não quero ir agora. Talvez eu precise de mais um tempo para, sei lá, fazer as malas? Não consigo elaborar direito uma metáfora então, antes que ele esteja perto demais eu jogo a real. — Eu sou virgem.
— Você sabe o que aconteceu com os dois? — eu pergunto para Karina. — Alguma coisa envolvendo o Heitor dando like na foto de um ex e o ex comentando nas fotos do Heitor com emoji de beijinho. Vocês jovens conseguem usar a tecnologia pra arruinar tudo, é surpreendente — ela explica, revirando os olhos.
Eu fui gay só dentro da minha cabeça durante a minha vida inteira, e sinto que isso fica cada dia mais óbvio para o resto do mundo. Estar com Arthur me tira do meu esconderijo e isso me dá medo. No fim das contas, acho que só aprendi a ter medo de Deus. A religião me afastou muito mais do que me aproximou Dele.
— Esse Arthur parece bem desconhecido pra mim — comenta Isa com uma risada, mas eu sei que sua brincadeira tem um fundinho de verdade. Eu não consigo rir, Danilo também não. Isa pega sua mochila que estava pendurada na cadeira do bar e fica de pé. — Bom, vou nessa. Vocês já me levaram pra uma festa a fantasia e agora um karaokê. Só falta um stand-up comedy e antes do meio do ano a gente completa a trilogia dos programas que eu mais odeio. Mas adoro vocês, viu? Me manda a hora e o local por mensagem depois.
Eu nunca fui o tipo de pessoa que dá muito valor para o próprio aniversário. Sempre fiquei empolgado para comer bolo e ganhar presentes, mas até hoje eu nunca tinha enxergado treze de maio como um dia para refletir. Talvez seja a virada da casa decimal. Talvez agora que eu tenho vinte anos eu comece a enxergar as coisas de forma mais madura. Talvez seja normal que o número de pessoas que me dão parabéns no dia do meu aniversário diminua, mas a importância que essas pessoas têm parece que é muito maior.
Me dou conta de que, por mais que a Isa não esteja presente na minha vida agora, as memórias que a gente construiu juntos são uma parte muito importante de mim.
Estou inseguro, mas Arthur me ajuda. Alguns momentos são meio constrangedores, mas nós rimos juntos e fica tudo bem. De início eu sinto vergonha, sinto dor, sinto vontade de fazer mais barulho do que eu realmente posso. Mas também sinto prazer. E quando terminamos, eu não me sinto culpado como achei que me sentiria.
EN MI MENTE ARTHUR ERA EL PASIVO Y ES TODO LO CONTRARIO????
PERO EL GUEVON NI LO ESPERABA Y COMIÓ CULE COMIDA, INCLUYENDO UNA PIZZA... MK EL MK LO HIZO SIN LAVADO WTF
Eu acabei de fazer sexo e não caiu um raio de condenação sobre a minha cabeça. O chão não se abriu e eu não fui arrastado para as profundezas do inferno. Eu continuo sendo eu (só que agora estou um pouco cansado e com muita fome).
— Eu te amo — ele responde. Sou pego de surpresa. Porque, por mais que a gente se chame de “amor” às vezes, esse é o nosso primeiro “eu te amo”. Já rolaram alguns “te adoro” lá no começo, daí a gente começou a mandar emoji de beijinho com coração um para o outro. Já até conversamos com voz de neném uma vez (não sinto orgulho, mas também não me arrependo). Mas esse é o nosso primeiro “eu te amo”. — Eu também te amo — digo, olhando nos olhos de Arthur. — E em partes te odeio porque você já fez o pedido de namoro e agora você diz que me ama primeiro. Você pode por favor deixar alguma coisa pra
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— Onde você quer chegar com isso? Tá com cheiro de autossabotagem. — Não é bem isso, mas será que em algum momento alguma coisa ruim não vai acontecer pra equilibrar as coisas? — Autossabotagem! — Não! É só que não sei se eu mereço tudo isso. Eu tenho sentido que, se Deus realmente existe, logo, logo ele vai me cobrar, sabe?
— Falando de qualquer forma é bobeira — Karina me corrige. — Eu não posso prever o futuro, e ninguém tem felicidade garantida pro resto da vida. Pode ser que amanhã as coisas piorem. Pode ser que você ganhe na loteria e as coisas melhorem mais ainda. A gente não tem controle de nada. Mas você não pode deixar essa falta de controle te impedir de viver o agora. — Isso parece autoajuda barata. — Mas é exatamente o que você está precisando escutar agora. Porque se você ficar pensando que a qualquer momento uma coisa ruim vai acontecer, você não vai conseguir aproveitar as pequenas coisas.
Algumas pessoas na rua começam a tirar os guarda-chuvas de suas bolsas, mas ninguém abre ainda porque a chuva não começou. É assim que eu me sinto por dentro. Eu sei que a tempestade vai começar a qualquer momento, mas ainda é cedo para me proteger. Não tem uma gota sequer caindo, mas o céu não me engana. Eu sei que vai chover a qualquer instante. É só esperar.
Corro para os fundos da loja, tiro meu avental, pego a fita de arco-íris e amarro no pulso. De imediato eu penso que a pulseira vai mostrar para as pessoas quem eu realmente sou. Um cara gay e feliz. Mas, no fundo, eu sei que vou sumir no meio de milhares de pessoas. Ninguém vai reparar em alguém baixinho como eu. Ninguém vai olhar para a minha pulseira colorida. No fundo eu sei que quero mostrar isso para mim mesmo. Eu preciso entender que é possível ser gay e também ser feliz.
Saber que meu pai prefere um filho drogado do que um filho gay me causa uma dor diferente de todas as dores que eu já senti.
Eu me sinto esgotado, desamparado e sozinho. É como se num piscar de olhos eu não tivesse mais nada. Nunca gostei da minha vida como ela é. Sempre inventei muitas histórias porque a minha realidade não era o bastante para mim. Eu nunca tive vontade de morrer, mas perdi as contas de quantas vezes desejei apenas parar de existir por um tempo. E todos esses anos segurando as aparências, me escondendo de mim mesmo, tentando viver duas vidas completamente diferentes e sustentando minhas mentiras me deixaram cansado. Estou no meu limite e não tenho forças para revidar.
Eu sempre fui de segurar o choro, a vida inteira. Não chorava na frente do meu pai porque cresci ouvindo que homem não chora e por muito tempo eu tentei ser o homem que ele esperava que eu fosse. Na igreja, tive inúmeras oportunidades de chorar, mas eu me segurava, com medo da minha mãe achar que tinha alguma coisa errada comigo. No meu quarto, sozinho, tive muitos motivos para chorar, mas todos eles apontavam o pecado dentro de mim. Então eu não chorava, porque não queria que Deus me visse assim.
A solidão me deixa mal, mas a ideia de conversar com mais alguém me deixa pior ainda.
— Os nomes de vocês, por favor? — pergunto, para anotar nos copos. — Felipe — o mais tímido responde primeiro. — E Caio — o outro responde em seguida. Escrevo os nomes com o máximo de esforço para fazer uma letra bonita e, pela primeira vez em muitos meses, eu desenho um sorriso no copo. Eu nem consigo perceber o momento em que isso acontece, mas, depois que os dois saem da loja felizes e de mãos dadas, percebo que também estou sorrindo.
MIS BEBES MIS CHIKITIKOS MIS AMORES MIS HERMOSOS COMO LES EXTRAÑABA MIS VIDAS AAAAAH ESTOU CHORANDO CARAAAAAAA NÃO PODE SER GENTEEEEEEE MARICA NO LO ESPERABA QUE BACANERIA
— O trabalho está bem. É só isso que a senhora quer saber? — pergunto, impaciente. Ela fica em silêncio por mais um tempo, e eu também não digo mais nada. — Vou continuar orando por você — ela diz finalmente. E isso é a gota d’água. — Muito obrigado, mãe. Muitíssimo obrigado pelas orações — eu respondo com toda a ironia que sou capaz de colocar no meu tom de voz. — Boa noite.
Eu estou cansado de orações. Passei a minha adolescência inteira orando para que Deus me tornasse hétero. Para que ele mudasse meus pensamentos e me purificasse de uma vez por todas. Quando me dei conta de que não tinha jeito, comecei a orar para que a minha família nunca descobrisse. Eu pedia a Deus todas as noites para que o meu segredo ficasse guardado pelo resto da minha vida porque sabia que nunca seria capaz de mudar quem eu sou, mas não queria machucar a pessoa que eu mais amava no mundo.
Como a segunda opção está fora de cogitação, eu pego uma almofada, enterro a minha cara nela e grito. Eu grito até meus pulmões arderem. Coloco para fora toda a raiva que sinto de viver em um mundo tão injusto em que um livro escrito há dois mil anos é muito mais importante do que a minha própria vida. Eu grito até perder a voz e, quando afasto a almofada do meu rosto, consigo ver a marca das minhas lágrimas de raiva molhando o tecido.
— Quando o Arthur contou para a gente que é… você sabe — Ângelo diz, olhando para mim. — Bissexual — Arthur completa quando percebe que o pai não vai terminar a frase. — Eu e a Sônia fomos para a cama naquela noite — ele continua, e eu tenho medo do rumo que essa história está tomando —, e eu comentei... Você lembra o que eu disse, amor? Eu disse: o primeiro que esse menino vai trazer pra dentro de casa vai ser homem. — Ai, eu lembro! Eu achei que você ia trazer uma namoradinha antes pra amenizar, filho! — Sônia diz com uma risada.
É então que me dou conta de que, sem que a gente perceba, a vida continua acontecendo. O mundo nunca vai parar para que eu resolva toda a minha vida e recomece do zero. Porque por mais que eu ainda esteja me recuperando de ter sido expulso de casa, no meio do caminho meu namorado vai ter problemas com a família, minha amiga de escola vai aparecer do nada pedindo perdão e meu melhor amigo vai terminar o namoro e eu vou precisar estar aqui para ajudá-los da melhor maneira possível. Porque eles precisam de mim da mesma forma que eu preciso deles, e tudo na vida acontece ao mesmo tempo.
nem sempre a família que nasce com a gente vai nos entender. Nem sempre eles vão ficar do nosso lado pra sempre. Mas isso nunca vai te impedir de escolher uma família nova.
Mas, lá no fundo, eu sei que não posso seguir o resto da vida dependendo de quem está comigo para ter uma vida feliz. Há muitas coisas que preciso resolver dentro de mim mesmo para alcançar o sentimento de que superei e venci.
— Eu estou ficando um pouquinho assustado com a possibilidade de você me amarrar na cama, arrancar minhas pernas com um machado e me obrigar a escrever o final que você quer — admito. Arthur dá uma risada, mas tenho quase certeza de que ele nunca leu Misery do Stephen King para pegar a referência.

