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Não te interessam as pessoas, como se modificam, como evoluem. Aproveitas-te das pessoas. Só dás espaço a quem te puser num pedestal. Só te ligas às pessoas na condição de te atribuírem prestígio e um papel digno de ti, só na condição de, celebrando-te, te impedirem de ver que na realidade és vazio e estás assustado com a tua vacuidade.
O suicídio, meu caro, foi uma ratificação. Mataste-me há muito tempo, e não no meu papel de mulher, mas enquanto ser humano que se encontrava no seu momento mais pleno, mais sincero.
o meu sistema de alarme desgastou-se, até se desactivar. Ou, sei lá, esbateu-se, com os anos, a marca do homem com quem não se faz farinha, um olhar, um trejeito da boca. Ou, mais simplesmente, como que me ofuscara, perdera a elasticidade vigilante que no decurso da existência me permitira sair da miséria das origens, criar os filhos, impor-me em ambientes difíceis, conquistar um pouco de bem-estar, adaptar-me às circunstâncias boas e más. Não sabia ao certo como e em que medida teria mudado, mas parecia-me agora que acontecera sem dúvida.
Seria isto a realização? Uma acumulação concreta nas dezenas de folhas escritas à mão e impressas, um rasto composto de rabiscos, fichas, páginas, jornais, disquetes, pens USB, discos rígidos, cloud
Não lhe importava que a instituição do casamento estivesse em crise, que a família estivesse moribunda, que a fidelidade fosse um valor pequeno-burguês. Queria que o nosso casamento fosse uma excepção miraculosa.
Parecera-me aprazivelmente aventureiro casar-me ainda novo, sem ter terminado os estudos, sem trabalho.
Certa vez, com a desculpa de que o anelar engordara, fui cortar a aliança. A Vanda ficou a sentir-se mal, esperou que fizesse algo para voltar a pôr o anel. Nada fiz. Ela continuou a usar a aliança.
Embora os espaços da casa permanecessem os mesmos, nem eu nem os meus filhos conseguíamos estar juntos com a desenvoltura de outrora. Tudo era agora artificial.
Teria ensinado o Sandro a apertar os atacadores? Não me lembrava. E nesse momento, sem uma razão imediata, deixei de me maravilhar que me fossem estranhos, a sensação de estranheza estava implícita no nosso relacionamento originário. Enquanto vivera com eles, tinha sido um pai distraído que, para os reconhecer, não sentia necessidade de os conhecer.
Aos poucos, pejado de sentimentos de culpa, controlei o incómodo, esforcei-me por lhe fazer vários elogios todos os dias, esperei com paciência que se cansasse de me demonstrar a sua inteligência, a radicalidade das suas opiniões políticas, a libertinagem na cama, a segurança de si.
Não tardei a compreender que, se nos anos anteriores tinha sido ela a mostrar-se sempre de acordo comigo e esse entendimento a acalmava, agora só sossegava se o entendimento pressupusesse que seria eu a revelar-me sempre de acordo com ela.
Desde essa crise de há tantos anos, aprendemos os dois que, para vivermos juntos, devemos dizer um ao outro muito menos do que aquilo que calamos.
Queria o meu pai só para mim — desejava arrancá-lo à nossa mãe e a ti —, mas ele não era de nenhum de nós, estava ali e no entanto não estava, tinha renunciado a mim, a ti, à nossa mãe. E tinha feito bem, depressa percebi. Toca a andar. A mãe parecia-lhe a negação do prazer de viver, e nós também, eu e tu também. Não estava enganado, éramos isso mesmo, a negação, a negação. A verdadeira falha dele foi não conseguir rejeitar-nos até ao fim. A falha dele foi que, depois de agires ao ponto de ferir profundamente, ao ponto de matar ou desfigurar para sempre outros seres humanos, não deves dar
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