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VLADIMIR Eis o homem: jogando nos sapatos a culpa dos pés.
VLADIMIR Você devia ter sido poeta. ESTRAGON E fui. (Indicando os farrapos com um gesto) Não está na cara?
POZZO Note que eu poderia estar no lugar dele e ele, no meu. Não tivesse o acaso escolhido o contrário. A cada um, o seu lote.
As lágrimas do mundo são em quantidade constante. Para cada um que irrompe em choro, em outra parte alguém para. Com o riso é a mesma coisa. (Ri) Não falemos mal, então, dos nossos dias, não são melhores nem piores do que os que vieram antes. (Silêncio) Não falemos bem, tampouco. (Silêncio) Não falemos. (Silêncio) Verdade que a população aumentou.
POZZO Mas foram. Foram muito corretos. Por isso, me pergunto o que poderia eu, por minha vez, fazer por estes bravos homens, prestes a morrer de tédio? ESTRAGON Cenzinho já estaria de bom tamanho.
VLADIMIR Ajudou a passar o tempo. ESTRAGON Teria passado igual. VLADIMIR É. Mas menos depressa. Pausa. ESTRAGON O que a gente faz agora? VLADIMIR Não sei. ESTRAGON Vamos embora. VLADIMIR A gente não pode. ESTRAGON Por quê? VLADIMIR Estamos esperando Godot. ESTRAGON É mesmo.
ESTRAGON Há quanto tempo estamos juntos o tempo todo? VLADIMIR Não sei. Uns cinquenta anos, eu acho. ESTRAGON Lembra do dia em que me atirei no Reno? VLADIMIR Na colheita das uvas. ESTRAGON Você me pescou de volta. VLADIMIR Tudo isso está morto e enterrado.
VLADIMIR Você também, deve estar contente lá no fundo, confesse. ESTRAGON Contente por quê? VLADIMIR De me reencontrar. ESTRAGON Você acha? VLADIMIR Diga, mesmo que não seja verdade. ESTRAGON O que quer que eu diga? VLADIMIR Diga: estou contente. ESTRAGON Estou contente. VLADIMIR Eu também. ESTRAGON Eu também. VLADIMIR Estamos contentes. ESTRAGON Estamos contentes. (Silêncio) O que vamos fazer agora que estamos contentes? VLADIMIR Esperar Godot.
VLADIMIR E falam do quê? ESTRAGON Da vida que viveram. VLADIMIR Não foi o bastante terem vivido. ESTRAGON Precisam falar. VLADIMIR Não lhes basta estarem mortas. ESTRAGON Não é o bastante.
ESTRAGON Estamos sempre achando alguma coisa, não é, Didi, para dar a impressão de que existimos?
Outros dariam conta do recado, tão bem quanto, senão melhor. O apelo que ouvimos se dirige antes a toda a humanidade. Mas neste lugar, neste momento, a humanidade somos nós, queiramos ou não. Aproveitemos enquanto é tempo. Representar dignamente, uma única vez que seja, a espécie a que estamos desgraçadamente atados pelo destino cruel.
POZZO (subitamente furioso) Não vão parar de me envenenar com essas histórias de tempo? É abominável! Quando! Quando! Um dia, não é o bastante para vocês, um dia como os outros, ficou mudo, um dia, fiquei cego, um dia, ficaremos todos surdos, um dia, nascemos, um dia, morremos, no mesmo dia, no mesmo instante, não basta para vocês? (Mais calmo) Dão a luz do útero para o túmulo, o dia brilha por um instante, volta a escurecer. (Puxa a corda) Adiante!
VLADIMIR Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã, quando pensar que estou acordando, o que direi desta jornada? Que esperei Godot com Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite? Que Pozzo passou por aqui, com o seu guia, e falou conosco? Sem dúvida. Mas quanta verdade haverá nisso tudo? (Tendo pelejado em vão com as botas, Estragon volta a se encolher. Vladimir o observa) Ele não saberá de nada. Falará dos golpes que sofreu e lhe darei uma cenoura. (Pausa) Do útero para o túmulo e um parto difícil. Lá do fundo da terra, o coveiro ajuda, lento, com o
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VLADIMIR Amanhã nos enforcamos. (Pausa) A não ser que Godot venha. ESTRAGON E se vier? VLADIMIR Estaremos salvos.

