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Parece-me que, na maioria dos casos, se passa assim: as pessoas vivem como todos vivem, e vivem com base em princípios que não só não têm nada de comum com a doutrina religiosa como, na maior parte, são contrários a ela; a doutrina religiosa não participa da vida, nunca serve para afetar as relações com os outros nem serve para guiar a vida pessoal; é professada em qualquer outro lugar, longe da vida, e de forma alheia a ela. Se deparamos com a doutrina religiosa, é apenas como um fenômeno exterior, sem relação com a vida.
Pela vida de um homem, por suas ocupações, hoje, como antigamente, é impossível saber se ele é crente ou não. Se existe diferença entre os que professam abertamente a fé ortodoxa e os que a negam, tal diferença não favorece os primeiros. Hoje, como antigamente, a aceitação e a confissão declaradas da fé ortodoxa se encontram, na maior parte, em pessoas estúpidas, cruéis, imorais, que se julgam muito importantes. Já a inteligência, a honestidade, a retidão, a generosidade e a moral se encontram, na maior parte, em pessoas que se declaram sem fé.
Minha vida parou. Eu podia respirar, comer, beber, dormir, porque não podia ficar sem respirar, sem comer, sem beber, sem dormir; mas não existia vida, porque não existiam desejos cuja satisfação eu considerasse razoável. Se eu desejava algo, sabia de antemão que, satisfizesse ou não meu desejo, aquilo não daria em nada.
Eu mesmo não sabia o que queria: tinha medo da vida, desejava me livrar dela e, no entanto, ainda esperava dela alguma coisa.
conseguimos viver enquanto estamos embriagados pela vida; mas, quando ficamos sóbrios, é impossível não ver que tudo isso é apenas ilusão, e uma ilusão tola! Na verdade, não há nada aqui de engraçado nem de espirituoso, é apenas cruel e absurdo.
Minha pergunta, aquela que, aos cinquenta anos de idade, me levou à beira do suicídio, era a mais simples que se abriga na alma de todos os homens, desde a criança tola até o velho sábio — uma pergunta sem a qual a vida é impossível, como eu estava comprovando, na prática. A pergunta consiste nisto: “O que vai ser daquilo que faço hoje, daquilo que vou fazer amanhã — o que vai ser de toda a minha vida?”.
“Só nos aproximamos da verdade na medida em que nos afastamos da vida”, diz Sócrates, ao se preparar para a morte. “Para que nós, que amamos a verdade, aspiramos à vida? Para livrar-nos do corpo e de todo o mal que emana da vida do corpo. Se é assim, como não nos alegrarmos quando a morte se aproxima de nós?” “O sábio, durante toda a vida, busca a morte e por isso a morte, para ele, não é terrível.”
O saber racional, na pessoa dos sábios e cultos, nega o sentido da vida, enquanto a enorme massa de pessoas, a humanidade inteira, reconhece esse sentido num saber irracional. E esse saber irracional é a fé, a mesma que eu não podia aceitar. Esse Deus trino, essa criação em seis dias, os demônios e os anjos e tudo isso que não posso admitir, a menos que me transforme num louco.
Pelo saber racional, se concluía que a vida é o mal, e as pessoas sabem disso, e não viver depende só das pessoas, mas elas viveram e vivem, eu mesmo vivia, embora soubesse, já havia muito tempo, que a vida não tem sentido e é o mal. Pela fé, concluía-se que, para entender o sentido da vida, eu devia renunciar à razão, exatamente ela, necessária para o sentido.
Quando observei também as pessoas de outros países, pessoas minhas contemporâneas e do passado, vi a mesma coisa. Onde há vida, desde que a humanidade existe, a fé que oferece a possibilidade de viver e os traços principais da fé são os mesmos, sempre e em toda parte.
Para que a humanidade toda possa viver, para que a humanidade dê continuidade à vida, dando a ela um sentido, esses milhões de pessoas precisam ter um conceito da fé diferente e verdadeiro. Portanto, não foi o fato de eu, Salomão e Schopenhauer não nos termos matado que me convenceu da existência da fé, mas o fato de milhões de pessoas terem vivido e viverem, e terem carregado a Salomão e a mim nas ondas de sua vida.
Mas nisso olhei para mim mesmo, para aquilo que se passava dentro de mim; e lembrei todas as centenas de vezes em que o abatimento e a animação se sucederam em meu íntimo. Lembrei que eu só vivia quando acreditava em Deus. Como era antes, assim é agora, e disse a mim mesmo: basta conhecer Deus para que eu viva; basta esquecer, não acreditar em Deus, que começo a morrer. O que é esse abatimento e essa animação? De fato, não vivo quando perco a fé na existência de Deus e, sem dúvida, já teria me matado há muito tempo se não tivesse uma vaga esperança de encontrá-lo. Afinal, eu vivo e, só quando
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