Olhos d'Água
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Read between May 28 - May 30, 2022
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Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida.
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A mãe só ria de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?
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Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?
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Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me perguntei
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se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
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Mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver.
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E ela, tão viciada na dor, fizera dos momentos que antecederam a alegria maior um profundo sofrimento.
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Em uma garrafa de cerveja cheia de água, um botão de rosa, que Ana Davenga havia recebido de seu homem, na festa primeira de seu aniversário, vinte e sete, se abria.
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Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte como uma forma de vida.
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Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos ...more
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Depois, tempos depois, Luamanda experimentava o amor em braços semelhantes aos seus. Os bicos dos seios dela roçando em outros intumescidos bicos. No primeiro instante, sentiu falta do encaixe, do membro que completava. Num ato de esquecimento,
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mão procurou algo ereto no corpo que estava diante do dela. Encontrou um falo ausente. Mas estava tão úmida, tão aquosa aquela superfície misteriosamente plana, tão aberta e igual a sua, que Luamanda afundou-se em um doce e feminil carinho. E quando se sentiu coberta por pele, poros e pelos semelhantes aos seus, quando a sua igual dançou com leveza a dança-amor com ela, saudade alguma sentiu, vazio algum existiu, pois todas as fendas de seu corpo foram fundidas nas femininas oferendas da outra.
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O amor se guarda só na ponta de um falo ou nasce também dos lábios vaginais de um coração...
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afora. O amor não cabe em um corpo?
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prazer. O amor é um tempo de paciência?
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Acordou, para o encontro que estava para acontecer naquela noite, quando ouviu os assobios de alguém que aguardava por ela lá fora. Apressou-se. Podia ser que o amor já não suportasse um tempo de longa espera.
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Ela queria saber do tempo dele, barganhar momentos, pedir um tempo emprestado talvez.
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Ou o tempo não se media com moeda, ou as horas, os dias, os anos não seriam medidas justas do tempo. Ela estava com vinte e nove anos. Pouco? Muito? Medir, comparar, aquilatar os anos em relação a que? Haveria um tempo outro amortecido no coração do tempo? O
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O moço via mulheres, homens e até mesmo crianças, ainda meio adormecidos, saírem para o trabalho e voltarem pobres como foram, acumulados de cansaço apenas.
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“Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento:
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e de muito sangrar, muito e muito...