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Kindle Notes & Highlights
Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida.
Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia!
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
Mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver.
E ela, tão viciada na dor, fizera dos momentos que antecederam a alegria maior um profundo sofrimento.
Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte como uma forma de vida.
Corria sobre a corda bamba, invisível e opressora do tempo. Era preciso avançar sempre e sempre.
O moço via mulheres, homens e até mesmo crianças, ainda meio adormecidos, saírem para o trabalho e voltarem pobres como foram, acumulados de cansaço apenas.
“Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito...