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E é pela fé que Abel, embora tenha morrido, ainda fala.
De facto, só viria a aparecer muito mais tarde, em data de que não ficou registo, para expulsar o infeliz casal do jardim do éden pelo crime nefando de terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Em primeiro lugar, mesmo a inteligência mais rudimentar não teria qualquer dificuldade em compreender que estar informado sempre será preferível a desconhecer,
Revolveu-se o senhor contra a mulher e perguntou, Que fizeste tu, desgraçada,
E que fizeste, mulher perdida, mulher leviana, quando despertaste de tão bonito sonho, Fui à árvore, comi do fruto e levei-o a adão, que comeu também,
Estás louca, Melhor louca que medrosa, Não me faltes ao respeito, gritou adão, enfurecido, eu não tenho medo, não sou medroso, Eu também não, portanto estamos quites, não há mais que discutir,
Atravessou o riacho gozando a frescura da água que parecia difundir-se-lhe por dentro das veias ao mesmo tempo que experimentava algo no espírito que talvez fosse a felicidade, pelo menos parecia-se muito com a palavra.
Tão valente, tão valente, e afinal vais aí cheia de medo. Sim, tinha medo, medo de falhar, medo de não ter palavras suficientes para convencer o guarda, chegou mesmo a dizer em voz baixa, tal era o seu desânimo, Se eu fosse homem seria mais fácil.
Nada mais sucedeu, nada mais podia suceder, os anjos, enquanto o sejam, estão proibidos de qualquer comércio carnal, só os anjos que caíram são livres de juntar-se a quem queiram e a quem os queira.
Foram aceites
O infeliz caim não teve outro remédio que engolir a afronta e voltar ao trabalho.
Explica-te, Não gostarás do que vais ouvir, Que isso não te importe, fala, É simples, matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por sua causa,
terás o teu castigo, Qual, Andarás errante e perdido pelo mundo, Sendo assim, qualquer pessoa me poderá matar, Não, porque porei um sinal na tua testa, ninguém te fará mal, mas, em pago da minha benevolência, procura tu não fazer mal a ninguém, disse o senhor, tocando com o dedo indicador a testa de caim, onde apareceu uma pequena mancha negra, Este é o sinal da tua condenação, acrescentou o senhor, mas é também o sinal de que estarás toda a vida sob a minha protecção e sob a minha censura, vigiar-te-ei onde quer que estejas, Aceito, disse caim, Não terias outro remédio, Quando principia o meu
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no tiro ao alvo de cegos ninguém havia acertado.
E, contudo, esse homem acossado que aí vai, perseguido pelos seus próprios passos, esse maldito, esse fratricida, teve bons princípios como poucos.
Chorar o leite derramado não é tão inútil quanto se diz, é de alguma maneira instrutivo porque nos mostra a verdadeira dimensão da frivolidade de certos procedimentos humanos,
Vou ficar aqui, disse caim em voz alta, conforme era seu costume, como se precisasse de tranquilizar-se a si mesmo, ele a quem ninguém ameaça neste momento, provavelmente nem o próprio senhor sabe onde ele se encontra.
dormiu como se supõe que deverá dormir uma pedra, sem consciência, sem responsabilidade, sem culpa, porém, ao acordar, à primeira luz da manhã, as suas palavras foram, Matei o meu irmão.
Que marca é essa que tens na testa, perguntou. Apanhado de surpresa, caim perguntou por sua vez, Qual marca, Essa, disse o homem, levando a mão à sua própria testa, É um sinal de nascença, respondeu caim, Não deves ser boa gente, Quem to disse, como o sabes, respondeu caim imprudentemente, Como diz o refrão antigo, o diabo que te assinalou, algum defeito te encontrou,
Não vás, diz-me ao menos como chamam a estes sítios, Chamam-lhes terra de nod, E nod que quer dizer, Significa terra da fuga ou terra dos errantes,
a dúvida é o privilégio de quem viveu muito,
Abel é o meu nome, disse caim.
Que eles não disseram aquelas palavras, é mais do que óbvio, mas as dúvidas, as suspeitas, as perplexidades, os avanços e recuos da argumentação, estiveram lá. O que fizemos foi simplesmente passar ao português corrente o duplo e para nós irresolúvel mistério da linguagem e do pensamento daquele tempo. Se o resultado é coerente agora, também o seria na altura porque, ao final, almocreves somos e pela estrada andamos. Todos, tanto os sábios como os ignorantes.
Enfim, tudo se andará, o progresso, tal como virá a reconhecer-se mais tarde, é inevitável, fatal como a morte. E a vida.
Samaritano, perguntou o olheiro intrigado, isso que vem a ser, Não sei, saiu-me de repente, sem pensar, nem sei o que significa,
Quem é, perguntou caim, É lilith, a dona do palácio e da cidade, oxalá não ponha os olhos em ti, oxalá, Porquê, Contam-se coisas, Que coisas, Diz-se que é bruxa, capaz de endoidecer um homem com os seus feitiços, Que feitiços, perguntou caim, Não sei nem quero saber, não sou curioso, a mim basta-me ter visto por aí dois ou três homens que tiveram comércio carnal com ela, E quê, Uns infelizes que davam lástima, espectros, sombras do que haviam sido, Deves estar louco se imaginas um pisador de barro a dormir com a rainha da cidade, Queres dizer a dona, Rainha ou dona, tanto faz, Vê-se que não
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Como tudo, as palavras têm os seus quês, os seus comos e os seus porquês. Algumas, solenes, interpelam-nos com ar pomposo, dando-se importância, como se estivessem destinadas a grandes coisas, e, vai-se ver, não eram mais que uma brisa leve que não conseguiria mover uma vela de moinho, outras, das comuns, das habituais, das de todos os dias, viriam a ter, afinal, consequências que ninguém se atreveria a prever, não tinham nascido para isso, e contudo abalaram o mundo.
Mais tarde ou mais cedo as consequências cairão sobre a minha cabeça, A isso, meu jovem, ninguém escapa neste mundo, mas, se és covarde, se tens dúvidas ou medo, o remédio é fácil, voltas para o barro,
Também caim se pergunta se não será hora de fugir daqui antes que seja demasiado tarde, mas a pergunta é ociosa,
Não nasci para isto, pensa caim. Também não havia nascido para matar o seu próprio irmão, e apesar disso tinha-o deixado cadáver no meio do campo com os olhos e a boca cobertos de moscas, a ele, abel, que também para isso não nascera.
porque lilith, quando finalmente abrir as pernas para se deixar penetrar, não estará a entregar-se, mas sim a tratar de devorar o homem a quem disse, Entra.
Não julgues que com essas mentiras te vais salvar, gritou o homem e avançou de espada em riste. No mesmo instante a arma transformou-se numa cobra que o homem sacudiu da mão horrorizado,
Então caim abriu a arca dos segredos e relatou o dramático sucesso com todos os pormenores, não esquecendo as moscas nos olhos e na boca de abel, também as palavras ditas pelo senhor,
E por que não o matas tu, perguntou caim, Creio que, apesar de tudo, não seria capaz, Homens que matam mulheres é coisa de todos os dias, matando-o tu talvez inaugurasses uma nova época, Outras que o façam, eu sou lilith, a louca, a desvairada, mas os meus erros e os meus crimes por aí se ficam,
Nessa noite, lilith e caim dormiram juntos pela última vez. Ela chorou, ele abraçou-se a ela e chorou também, mas as lágrimas não duraram muito, daí a nada a paixão erótica tomava conta deles, e, governando-os, novamente os desgovernou até ao delírio, até ao absoluto, como se o mundo não fosse mais do que isto, dois amantes que um ao outro interminavelmente se devoravam, até que lilith disse, Mata-me.
O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim.
Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes.
Quem é você, Sou caim, sou o anjo que salvou a vida a isaac. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente a sua deixa, Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor, disposto, por amor dele, a não poupar nem sequer o teu filho único, Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi.
E se esse senhor tivesse um filho, também o mandaria matar, perguntou isaac, O futuro o dirá,
O ciúme é o seu grande defeito, em vez de ficar orgulhoso dos filhos que tem, preferiu dar voz à inveja, está claro que o senhor não suporta ver uma pessoa feliz, Tanto trabalho, tanto suor, para nada, Que pena, disse caim, daria uma bonita obra,
A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.
Então abraão fez três perguntas ao senhor, Será que vais destruir os inocentes juntamente com os culpados, vamos supor que existem uns cinquenta inocentes em sodoma, vais destruí-los também a eles, não serás capaz de perdoar a toda a cidade em atenção aos cinquenta que se encontram inocentes do mal. E prosseguiu dizendo, Não é possível que vás fazer uma coisa dessas, senhor, condenar à morte o inocente juntamente com o culpado, desse modo, aos olhos de toda a gente, ser inocente ou culpado seria a mesma coisa, ora, tu, que és o juiz do mundo inteiro, deves ser justo nas tuas sentenças.
existam inocentes ou não, sodoma será destruída, e se calhar esta mesma noite, É possível, sim, e não será apenas sodoma, será também gomorra e duas ou três outras cidades da planície, onde os costumes sexuais se relaxaram por igual, os homens com os homens e as mulheres postas de parte,
e aí caim disse, Tenho um pensamento que não me larga, Que pensamento, perguntou abraão, Penso que havia inocentes em sodoma e nas outras cidades que foram queimadas, Se os houvesse, o senhor teria cumprido a promessa que me fez de lhes poupar a vida, As crianças, disse caim, aquelas crianças estavam inocentes, Meu deus, murmurou abraão e a sua voz foi como um gemido, Sim, será o teu deus, mas não foi o delas.
Num instante, aquele mesmo caim que havia estado em sodoma e voltara aos caminhos encontrou-se no deserto do sinai onde, com grande surpresa, se viu no meio de uma multidão de milhares de pessoas acampadas no sopé de um monte.
O caminho do engano nasce estreito, mas sempre encontrará quem esteja disposto a alargá-lo, digamos que o engano, repetindo a voz popular, é como o comer e o coçar, a questão é começar.
Caim mal podia acreditar no que os seus olhos viam. Não bastavam sodoma e gomorra arrasadas pelo fogo, aqui, no sopé do monte sinai, ficara patente a prova irrefutável da profunda maldade do senhor, três mil homens mortos só porque ele tinha ficado irritado com a invenção de um suposto rival em figura de bezerro,
Vou-me embora, disse, já não suporto ver tantos mortos à minha volta, tanto sangue derramado, tantos choros e tantos gritos, devolve-me o meu burro, preciso dele para o caminho,
Caim não sabe onde se encontra, não percebe se o jumento o estará levando por uma das tantas vias do passado ou por algum estreito carreiro do futuro, ou se, simplesmente, vai andando por um qualquer outro presente que ainda não se deu a conhecer.
O escravo subiu a escada e voltou daí a pouco acompanhado por um rapazinho que devia ter uns nove ou dez anos, É o meu filho, pensou caim.

