Kindle Notes & Highlights
Enquanto a água se pode guardar em garrafas, as histórias não podem ser engarrafadas sem que se estraguem rapidamente. Têm de andar ao ar livre como os animais selvagens. Temos de as soltar para que possam correr todas nuas.
Muito da eficiência daquilo que fazemos, daquilo que mastigamos, depende sobretudo do que não se vê. Das raízes.
Parece-me uma grande felicidade que, quando se olhe para o mundo, pareça sempre que é a primeira vez que o fazemos.
Só somos felizes quando já não sentimos os sapatos nos pés.
Ver coisas que vulgarmente não vemos tem gradações de repulsa ou fascínio. Há um certo pudor quando se vê o que está debaixo das roupas, e, quando vemos ainda mais fundo, sentimos a vertigem do enjoo, do nojo. Desmaiamos quando vemos sangue. Não há visão mais terrível que a do interior do homem, seja anatomicamente seja moralmente.
Um homem possui três estômagos: um na barriga, outro no peito e outro na cabeça. O da barriga, toda a gente sabe para que serve; o do peito mastiga a respiração, que é a nossa comida mais urgente. Uma pessoa morre sem ar muito mais depressa do que sem água e pão. E por fim há o estômago da cabeça, que se alimenta de palavras e de letras. Os primeiros dois estômagos do homem alimentam-se através da boca e do nariz, ao passo que o terceiro estômago se alimenta principalmente através dos olhos e dos ouvidos, apesar de usar tudo o resto de um modo mais subtil.
Para mim é evidente: o amor aproxima as pessoas e ficamos todos do mesmo tamanho.
Os homens são obcecados por retas: por prédios muito direitos, por réguas, por coisas que não são nada naturais. E essas coisas só aparentemente é que são direitas, como se pode verificar ao microscópio. Mas os homens são tão obcecados por linhas retas que chegam a usar a palavra direito para leis, para aquilo que é certo. O que é certo é reto. É assim em tantas línguas que prova uma inclinação comum: a reta é o Bem e a curva é o Mal.
A paixão é o sentimento que contém tudo, por isso, quando um homem se apaixona, dentro dele está tudo. Desde a coisa mais pequena à coisa maior, que muitas vezes são a mesma coisa.
O mundo inteiro puxa-nos para baixo, mas as mãos de quem gosta de nós atiram-nos para o alto. Sem se cansarem.
O tempo prende-nos com paredes de vidro. Se um dia te recordares disto, sais em liberdade com a mesma facilidade com que o vidro se parte. Verás que o que te assustava não passa de areia. É nisso que tudo se transforma.
Deus. Sors sentia a sua pele arrepiar-se quando as duas respirações, a dele e de Františka, ficavam sincronizadas. Por vezes tinha mesmo de voltar para casa, pois ficava enjoado com a emoção, chegando a vomitar.
pois os sapatos são bons quando não se sentem.
E nunca terminava a comida. Era a sua fixação pelas coisas inacabadas, mas também o seu apreço pela contenção.
dizem que o mapa não é o território, mas as palavras é que são as coisas. Há mapas, mas não há nenhum território. A palavra porta abre e fecha; e a palavra janela, se for velha, tem o vidro partido. A palavra água ou se bebe ou nos afoga. Porque há pessoas com sede e pessoas que se afogam. É assim que se separa a humanidade: uns pegam nas coisas para morrer e outros para viver. E há a palavra mar que afunda todos os navios.
O amor, dizia Sors, é uma casa sem telhado, pois quando olhamos para cima vemos o céu.
A morte, pensava Sors, não leva só a pessoa, leva também as imagens que os outros guardam dela nas suas memórias. A morte não deixa traços.
Os melhores beijos são invisíveis, são como um pintor debaixo do lava-loiças.
— É assim a vida. Tudo mata tudo. Quando precisamos de comer, matamos. É o ciclo da vida, não é?
— Para ganhar uma guerra — disse Sors — há duas condições: não morrer e não matar. É só nesse caso que se pode sair vitorioso de uma guerra.
não há nada pior do que a falta de coisas para fazer.
Não há arte nenhuma capaz de convocar tantas almas quanto a violência.
A arte serve para ver o interior das coisas, disse Sors. Atravessar as paredes e mostrar aquilo que não se vê, o que está escondido.
A certa altura começou a pôr três pratos à mesa: para o pai, que tinha sido executado e que fora um assassino, e para a mãe, que estava num hospício. Deitava as roupas de ambos os pais na respetiva cama. Fazia isso todos os dias, tal como a sua mãe costumava fazer. Os mesmos gestos, o mesmo ritual.
O seu passado parecia ter ficado definitivamente para trás, mas o passado nunca fica para trás. Anda sempre connosco. Mais ainda, vai à nossa frente — o futuro só o vemos através desse passado.
Cantavam músicas austríacas e checas e eslovacas, músicas das suas infâncias, e quando o faziam era como se voltassem a ter quatro anos. Františka tinha razão: quando se canta, as coisas voltam ao seu estado original.
Os judeus não estão a ter a vida muito fácil por estes lados. Seria conveniente tirar a tua mãe do hospício o quanto antes.
Matar, qualquer animal o sabe fazer, mas perdoar é um luxo. Não esquecemos as coisas, mas elas já não nos tocam.
Sors até via bem, nem sequer usava óculos, mas o seu mundo eram gradações de sombras. Sem uma gota de luz.
morte do coronel servira como uma semente. Enterram-se os mortos e nasce qualquer coisa nos vivos. Foi assim com Sors. Começou a crescer dentro dele um mal-estar tão grande que já não lhe cabia no estômago nem na vida, nem nas gavetas da cómoda, nem debaixo da cama (que é onde se guardam os monstros) nem em lado nenhum.
O futuro não existe, como todos sabemos. O futuro será sempre uma coisa a provar. A única coisa que todos nós vemos é o presente. O futuro, bem como o passado, não passam de memórias e previsões. Coisas que não têm existência senão dentro de nós. Porém, até os maiores céticos creem no futuro. Como se ele existisse realmente, como se existisse fora de nós. É uma crença coletiva, apesar de apenas vermos o presente. Mas intuimos, o que abre o espectro da nossa perceção. Se podemos crer em algo que nunca vimos, será que não podemos acreditar em várias outras coisas que nunca vimos?
Imagine-se uma capoeira onde uma das galinhas é mais bem alimentada do que as outras. Ela diz, ufana, que o criador de galinhas gosta mais dela do que das outras. E o facto de isso acontecer todos os dias reforça essa crença. Todas as galinhas estão convencidas da preferência do produtor. Todos os dias ele dá mais comida à sua favorita. E um dia mata-a para fazer um guisado. É preciso muito cuidado com o indutivismo que nos faz crer que o dia de amanhã seguirá o dia de hoje porque tem acontecido assim desde sempre. É que o futuro, entretanto, pode ter-se transformado em areia.
— Eram só judeus, era um hospício só para eles. Foram todos abatidos dentro do edifício. Nenhum chegou a sair. Ouvi gritos a noite toda e tiros e risos. Ao que parece, não faria sentido levá-los para um campo de concentração.
Durante uns dias Sors ficou num belíssimo hospital psiquiátrico. A liberdade era tão grande que sentiu umas melhoras nos olhos. Sors podia andar nu, insultar quem quisesse, gritar, enfim, tinha descoberto a verdadeira liberdade. Sem convenções sociais, sem limites, sem diplomacia. Sors estava encantado, mas ao fim de dois dias de experiências já havia pouco para fazer e já não se sentia livre. É esse, aliás, o problema da liberdade: se é muita, tudo pode ser tudo, não há limites para nada, não há obstáculos, e o aborrecimento instala-se.
A liberdade é o maior inimigo da identidade e uma pessoa tem de arranjar um equilíbrio entre ambas.
é triste que só se viva quando se tem um abismo debaixo dos pés. Seria perfeito se pudéssemos sentir a mesma coisa deitados num sofá. Mas só no abismo é que vivemos.
Ninguém pode rir quando há nazis. Não há nada mais incompatível.
Para que fique claro, a portugalidade define-se assim: o nosso sucesso é uma ponte entre dois fracassos. Para ver a quantidade de pessimismo que existe em cada português: uma ponte entre dois fracassos. Nós somos um povo fatalista, caro senhor, fatalista: para nós, o destino está escrito. Ah, se ao menos soubéssemos ler!
— Não tem apelido? Não importa. Conheço um bar que fica aberto a noite toda. Sors hesitou. — Eu pago — disse ela. — Acabo de ganhar algum dinheiro no bacará. Dinheiro que se ganha no vício não fica bem gastá-lo com virtudes. Vem?
A vida só termina com a morte quando se viveu antes de morrer. É uma bênção.
para que a realidade se torne um sonho é preciso que um sonho se torne realidade.
— Eu nunca gostei de escorregas — disse Sors. — O escorrega ensina-nos que um pequeno, muito pequeno, momento de prazer exige que subamos escadas. O esforço para ser feliz é muito maior do que aquilo que desfrutamos. É isso que nos diz o escorrega. Não é por acaso que todos nós somos educados com eles.
— É tudo tão escuro. Tem cores, mas é — como dizer? — sem luz. Qual é a sua cor favorita? — A minha cor favorita é a transparência absoluta.
— A felicidade é quando nos esquecemos da infelicidade em que vivemos.
Os olhos, quando se apagam, apagam tudo à volta. Isto deve-se à luz que temos dentro do nosso escuro.
É claro que essa é a maior razão para eu detestar aviões. A minha aversão ficou completa quando vi como é fácil matar quando se está no céu. As coisas cá em baixo são tão pequeninas. É difícil acreditar que essas coisas pequeninas sejam homens e mulheres e crianças, com vidas, que se amam e se odeiam. Visto de cima — disse Sors pegando numa caneta e num papel —, um homem é assim:
Não se veem os olhos. Por isso é que é muito mais fácil matar assim, quando não se veem os olhos. Quando andamos pela terra, vemos as pessoas de frente. É difícil bombardear pessoas quando estão de frente, mas da vertical, o que se vê são números, números a explodir. Por isso nunca gostei de aviões.
Julgo que todos nós, olhando para a vida dos nossos antepassados, encontramos histórias que dariam histórias.

